Lá se vão mais de cinco anos e cá sigo revisitando aquele dia, em que décadas de história se perderam em poucos segundos, arrastadas pelas águas, cobertas pela lama. Fotografias de infância, o sapatinho usado quando bebê, o ambiente repleto de memórias e amores, amor pela terra, pelas pessoas, por um bairro...
Em 04 de abril de 2019, o Parque Rodoviário vivenciou uma tragédia inimaginável que ceifou duas vidas: Graça Bacelar (70 anos) e Josiel Amorim (de apenas 4 anos). O rompimento de uma 'lagoa' em um clube desativado deixou um rastro de destruição, tomando de surpresa uma comunidade e transformando um cenário de calmaria num retrato de desespero em uma fração mínima de tempo.
Essa história de dor e luto coletivo foi vivenciada por toda a comunidade - e também por mim, afinal de contas estive entre os atingidos. São cinco anos de luta e de reconstrução, uma reconstrução balizada por atores que foram primordiais no acolhimento das vítimas da tragédia. Além das perdas materiais, o impacto na saúde mental é constante e faz com que aquele 04 de abril torne-se eterno.
"Sempre quando chove eu lembro daquele dia e fico com um receio, um medo, as noites de chuva nunca mais foram as mesmas", diz Maria dos Anjos, que teve a casa atingida pela enxurrada no bairro, perdendo diversos bens materiais.
Ao todo, 109 famílias foram atingidas pelo episódio, com cerca de 30 feridos e mais de 400 afetados diretamente. São essas famílias que lutam até hoje por justiça e encontram em instituições como o Ministério Público do Piauí a salvaguarda, o amparo necessário.
Membro da Associação de Moradores, Henrique Carneiro, perdeu sua residência na tragédia, ele elenca o papel da instituição na garantia dos direitos básicos para quem viu sua vida se transformar apenas em uma noite.
“O Ministério Público foi uma peça fundamental para nós nessa tragédia e até agradeço a doutora Mirian (Lago), a doutora Francineide (Sousa), que nos assistencializou algo de 100%, nos chamou para uma conversa, eu participei de todo o processo, junto ao Ministério Público e Prefeitura de Teresina, com aluguel solidário, com cestas básicas de assistencialismo”, cravou.
ONDE A ESPERANÇA RENASCEU….
Depois da noite de terror do dia 04 de abril de 2019, populares se aglomeravam aos montes para observar o retrato da tragédia. As famílias atingidas tentavam em meio aos escombros recuperar o ‘mínimo’ – ainda sem acreditar que há poucas horas a vida seguia o fluxo normal, sem grandes entreveros.
Em meio ao caos formou-se uma rede de solidariedade, com os teresinenses se unindo em prol da garantia de uma dignidade, de um alento para quem agora teria que recomeçar do zero. Diante desse quadro desafiador, a promotora Myrian Lago - titular da 49ª Promotoria de Justiça de Teresina, observava os danos provocados no bairro e adentrava naquele ‘universo’ que faria parte da sua trajetória no Ministério Público pelos próximos cinco anos, numa luta incessante.
“A atuação começou exatamente 24 horas após a tragédia, então naquele momento nós tínhamos uma atuação com medidas emergenciais, o que a gente buscava, que as pessoas fossem colocadas em áreas seguras, porque não se sabia ainda a repercussão daquele rompimento da lagoa, não se sabia se havia outros pontos, que as pessoas fossem acolhidas por outras famílias, que elas fossem inseridas em programas sociais, que elas tivessem acesso a locais que tivessem água de boa qualidade e energia, aquela coisa da medida emergencial que é necessária fazer, porque ali já se tinha o impacto de se perder sua moradia, de perder seus entes queridos, como aconteceu com duas famílias, então você precisava resguardar o mínimo da dignidade daquelas pessoas naquele momento emergencial”.
Após o trabalho emergencial, a Promotoria elencou duas vertentes de atuação: a da moradia e da assistência social. Nesse processo foram identificadas as famílias que perderam tudo e aquelas que tiveram prejuízos, mas tinham como se manter em casa, a partir de tal mapeamento se desenvolveu toda a atuação do Ministério Público em conjunto com outros órgãos.
“Enquanto aquelas famílias não tivessem suas casas próprias em locais seguros elas teriam que ser abraçadas, abrigadas e resguardadas pelos programas da assistência social”, explica Myrian Lago.
Dignidade não tem preço…
As centenas de moradores afetados pela tragédia no bairro quando não ficaram totalmente desabrigadas, não tinham roupa, alimento, nem mesmo água. Com o evento ‘inesperado’, nem havia como ‘se preparar’, o que se via era o desalento e o questionamento: o que vou fazer agora?
“Na minha casa, por exemplo, foi perca total. Chegamos aí a receber um banho de água, de forma inesperada, que a gente não esperava pelo tanto de anos que moramos aqui, a gente jamais esperaria de se criar uma lagoa misteriosa e ceifar duas vidas, e destruir muitas coisas na nossa comunidade, mesmo com tantas enchentes, no ano de 2019, ali no dia 4 de abril, foi uma noite de terror na nossa comunidade. Fomos recebidos de surpresa com um vendaval de água, foi muito desesperador aquilo ali pra gente”, afirma Henrique Carneiro, uma das vítimas do episódio no bairro.
Com o quadro de vulnerabilidade em que as famílias foram inseridas, o Ministério Público garantiu numa articulação com a Prefeitura de Teresina a inclusão das famílias no programa ‘Aluguel Solidário’, tal como a disponibilidade de cestas básicas mensalmente, além da orientação e auxílio para que os moradores tivessem acesso aos demais benefícios sociais dispostos pelo Governo Federal e Governo do Estado.
“A assistência social, esse direito é pouco lembrado, mas de grande relevância. Então, a nossa atuação se deu primordialmente nesses três veios, primeiro com relação à questão emergencial, segundo com relação à questão de moradia e terceiro com relação à assistência social”, pontua a promotora titular da 49ª Promotoria.
Durante todos os anos que sucederam o rompimento da lagoa, o Ministério Público não deixou de amparar os moradores, mesmo quando as vozes na batalha ficavam escassas, lá estava a instituição.
Esse amparo é visto não somente na atuação da Promotoria de Direitos Humanos, a 4ª Promotoria, através da promotora Francineide Sousa, também esteve nas trincheiras na luta pela indenização das famílias do Parque Rodoviário.
“Sempre fomos muito bem recebidos no Ministério Público, participei de audiências e sempre eles deixavam muito claro como estavam atuando e que estavam fazendo o possível”, revela a dona de casa Maria dos Anjos.
O CAMINHO DA REPARAÇÃO…
A cena pós enxurrada era de horror, móveis cobertos pela lama, carros lançados a metros e mais metros de distância, entulhos, casas no chão… Os danos materiais para muitos foram incalculáveis, especialmente quem tinha algum empreendimento, e se viu sem ‘o ganha pão’.
Nesse sentido, a atuação da promotora Francineide Sousa foi no sentido de garantir uma indenização para as vítimas. O acordo de não persecução penal consolidou-se em junho desse ano, englobando um total de R$ 2 milhões, cerca de R$ 28 mil para cada família.
Os pagamentos às vítimas foram concluídos em meados de agosto. Essa vertente tocada pela promotora Francineide foi iniciada pela então titular da 4ª PJ, Luzijones Façanha.
“Não foi fácil, não foi fácil, eram muitas portas fechadas, mas que graças a Deus e através também do Ministério Público, que foi uma peça fundamental, fundamental, abriram várias portas, podemos tratar diretamente com o poder público e chegamos a esse dever cumprido diante de toda essa tratativa. Foi uma luta muito grande, foram cinco anos de lutas até que chegamos até aqui”, disse o representante dos moradores, Henrique Carneiro.
A TÃO SONHADA MORADIA…
Cinco anos de espera, de incertezas, de desalento… As 22 famílias que viram o seu lar desabar numa fração de segundos tiveram sua dignidade resgatada em junho deste ano, com a entrega das unidades habitacionais do Residencial Flávio Josiel, o ‘novo Parque Rodoviário’.
O nome do conjunto de casas homenageia o garoto de 4 anos, que morreu na tragédia, simbolizando que mesmo com a reparação, a cicatriz segue e sempre permanecerá em todos que de algum modo se sensibilizaram com o drama vivenciado pela comunidade.
“É uma vitória não é algo de 100%, como você sabe porque teve muitas percas, e infelizmente tivemos duas mortes, mas que hoje estamos aqui, não é algo de 100%, vamos botar algo aqui de 80%, que já estamos nas casas, já houve uma indenização por parte da empresa Oi, que indenizou as famílias num valor de dois milhões, foi rateado para as famílias em um valor de 28 mil reais para cada família, e hoje estamos assim felizes e infelizes por conta das mortes da Dona Graça, que era uma pioneira da nossa comunidade e o caso do Josiel que hoje recebe o nome do residencial que é Flávio Josiel, em nome do falecido”, afirma Henrique Carneiro.
A atuação do Ministério Público para a construção das moradias iniciou no dia seguinte à tragédia, a promotora Myrian Lago relembra esse momento, em que se priorizou a escolha de um terreno seguro e na comunidade, para evitar que as famílias já sensíveis pelas perdas, tivessem que lidar com a mudança de bairro.
“O Parque Rodoviário tem essa característica. Muitas famílias moram no mesmo local. Os primeiros ocupantes chegaram e outras pessoas da mesma família foram chegando. Então, tinha esse vínculo muito forte e isso também, de certa forma, serviu como pressão para que o poder público fizesse a sua parte. Então, a gente cobrou muito pela construção, porque quando o terreno foi desapropiado, ele já foi desapropiado para fins de moradia para a futura construção do novo Parque Rodoviário, que ia exatamente ser destinado para abrigar essas famílias que tiveram perda total”.
“O MAIS IMPORTANTE ERA TER DE VOLTA SEU LUGAR AO MUNDO”
Henrique foi um dos moradores que perdeu sua moradia e hoje celebra a entrega da sua casa, a celebração é ainda mais especial pela manutenção das famílias no bairro que tanto amam e que criaram suas raízes; uma sensação de pertencimento respeitada pelas autoridades e perseguida pelo Ministério Público – que recusou a mudança dos moradores para outra região.
“As pessoas atingidas pela tragédia já moravam aqui, os filhos já estudavam aqui, já trabalhava aqui próximo, já tinha um emprego aqui próximo. Então assim, quando houve essa proposta de nos transferir daqui para outro lugar, o Ministério Público não aceitou, porque a gente tinha uma vida aqui e a gente deveria ficar aqui, até porque na época esse terreno hoje que já tem 44 famílias realocadas, a tragédia já toda realocada nas novas casas que estão aqui hoje no residencial Flávio Josiel, foi com que a promotora falou para o prefeito na época que não dava certo essas famílias saírem daqui, porque eles já tinham uma vida aqui e que se essas famílias fossem para outro local, eles iam começar do zero. Então, o Ministério Público não aceitou, graças a Deus, todo mundo entrou em um consenso, Prefeitura, Ministério Público, o prefeito na época, Firmino (Filho), decretou essa área como área de interesse social para realocar famílias da tragédia que iriam, que não poderia mais voltar para aquele local atingido e que hoje nós estamos aqui, graças a Deus”, aponta o membro da Associação de Moradores.
A titular da 49ª Promotoria, a promotora Myrian Lago explica que o diálogo sempre foi priorizado, de modo a evitar pendências na Justiça e uma demora ainda maior para que as famílias tivessem alguma reparação.
“Procurou-se sempre no diálogo, nunca tomamos nenhuma medida judicial, não sei nem quantas audiências nós fizemos, nós fizemos muitas (…) No decorrer da pandemia o primeiro impacto foi, teve que parar a obra, teve que parar tudo, não tinha nem começado ainda, ia começar a terraplanagem, não podia mais, seis meses tudo parado, quando voltou foi aquele recurso do material de construção que subiu absurdamente; foram feitos três ajustes contratuais, foram modificadas as empresas contratadas para a construção, só a terceira foi a que realmente deslanchou. Então, o fato da pandemia foi uma agravante, porque sem ter a perspectiva de mudança de casa, o mais importante era a casa, era ter de novo seu lugar no mundo”, cravou.
DEVER CUMPRIDO
Com inúmeras audiências e mais de 60 meses de atuação no processo mais longevo da história da Promotoria, Myrian Lago revela que a sensação é de dever cumprido. A representante do Ministério Público, porém, deixa claro que o Parque Rodoviário é uma ‘ferida aberta’ no meio de Teresina, que está buscando ser cicatrizada.
No entanto, a mensagem que fica é de superação e acolhimento. Além da reparação individual, o bairro passa por um processo de requalificação, ganhando espaços comuns, para que a tragédia seja lembrada, mas que fique no passado e nunca mais se repita...
“Em princípio, acho que cumpri (minha missão), embora não tenha sido no tempo que se esperava. Tivemos o fator pandemia, que foi um fator determinante pro atraso na questão das obras. Agora, o processo é muito interessante, que no processo do Parque Rodoviário, eu sempre digo que o Parque Rodoviário é uma ferida aberta no meio de Teresina, que está buscando se cicatrizar. Foi algo que impactou não só aquela região, foi toda a cidade que ficou envolvida. (…) Eu não esqueço nunca da primeira vez que nós fomos lá, que a gente chegou, tinha uma sala grande da igreja católica, que era um quarto mais ou menos, que dava umas duas áreas dessa Promotoria todinha aqui, cheio de água mineral, do chão até o teto, tudo de doação, tinha tanta coisa que as duas igrejas evangélicas também abriram, deixaram de fazer o culto para ser depósito, então cada um tinha alimento, tinha roupa, tinha tudo, essa de água foi assim, aquele susto que a gente levou. Eu acho que a cidade, de uma certa forma, se apropriou dessa dor, sofreu essa dor junto com aquela população toda”.
Além da construção das moradias e da indenização, o Ministério Público também abriu um procedimento para que se apurasse o crime ambiental. A ocorrência no bairro serviu de baliza para um maior monitoramento de áreas com risco de deslizamento, pautando uma prevenção mais efetiva.
“A gente tinha preocupação porque algumas casas jamais seriam a mesma que a pessoa tinha antes. Mas seria uma casa, o seu lugar de referência no mundo. E aí a gente ficou o tempo todo cobrando. Não sei quantas audiências fizemos, não sei mais nem quantas vezes fomos lá. A atuação do MP não se deu apenas na perspectiva dessa Promotoria, houve uma atuação com relação a um crime ambiental, foi feita uma denúncia contra a Oi Telemar. Foi feito também um procedimento criminal, onde foi feito um acordo de não persecução penal com a Oi. (…) É o procedimento mais antigo da Promotoria, inclusive a gente não costuma ter procedimento tramitando mais do que três anos, mas o Parque Rodoviário exigiu que acontecesse. A gente evitou de judicializar porque ficamos com medo também da Justiça não compreender totalmente a demanda, porque tem muitas perspectivas. E assim, nós conseguimos agora, nesse mês passado, as últimas casas forem entregues para as famílias do Parque Rodoviário”, finalizou.
OS SONHOS…
Mesmo que o trauma permaneça vivo e acompanhe para sempre as centenas de moradores impactados pela tragédia, a entrega das casas marca uma nova etapa, uma etapa que simboliza uma virada de página para que se construa outra história.
“Meu sonho é me reconstruir mais ainda. Graças a Deus, a gente já tem um local bem localizado, uma casa nova. E, assim, foi algo que foi uma tragédia, mas que hoje estamos felizes, tinha gente que não tinha um ambiente desse, que hoje está na sua casa nova. É uma casa nova e um começo de uma nova vida, não é algo de 100%, porque tem gente que perdeu filho, perdeu mãe, mas que hoje já dá para a gente dar uma guinada, tocar em frente”, afirma Henrique Carneiro.
nenhum obstáculo é forte suficiente quando se tem amor, acolhimento e um ‘amanhã’.
‘Tocar em frente’, ‘superar’, reconstruir… As marcas deixadas pela tragédia jamais serão apagadas e o que foi vivenciado naquele dia sempre estará presente na memória das vítimas - inclusive, na minha. Certamente nada supera o trauma, e ele vem em todas as noites de chuva. Porém, mesmo com aquele 04 de abril ‘eterno’, a resiliência de toda comunidade prova que