Dois fatos extraordinários me levam à França nesta segunda-feira. O primeiro- sentindo-me bastante aliviado-, para registrar que os franceses correram a tempo de interromper uma onda imerecida e assustadora, que levava à crença de que a extrema-direita poderia vencer o segundo turno das eleições parlamentares desse histórico berço da liberdade, igualdade e fraternidade, e assim conquistar o poder de governar esse país-símbolo da Democracia.
O segundo ponto, é que nesta data de 8 de julho, o mundo festeja os 103 abençoados anos de vida do grande pensador Edgar Morin, este monumento de sabedoria e humanismo absoluto, que chega a essa idade em pleno vigor de mente e espírito, a ponto e ter feito recente alerta para que os franceses criassem uma frente de resistência para conter a desgraça anunciada, ou seja, a perspectiva de que o nazifascismo chegasse ao poder.
A expressiva vitória das forças democráticas nesse domingo, com a colisão de esquerda alcançando 34%, o Centro obtendo 31% (somando-se 65%) e empurrando a extrema-direita- que havia fica ficado no topo no primeiro turno-, agora para o terceiro lugar, com 28%, além de constituir um alívio para a França e para a humanidade, tem o grato poder de mostrar como dois acontecimentos aparentemente díspares (a eleição francesa e os 103 anos de Morin) se entrelaçam.
E explico: Parece-me bastante claro que esse paradigma monumental de inteligência e longevidade, festejando além do seu centenário de vida no dia seguinte à derrota da extrema-direita em seu país de nascimento e de escolha, é de fato uma luz de esperança nesses estranhos e obscuros tempos que temos vivido mundo afora. Mesmo nessa idade tão avançada no tempo, Morin esteve ligado aos acontecimentos, a ponto de transmitir um alerta para os franceses resistirem. E esse alerta lançado, que se somou às gigantescas movimentações que tomaram conta das ruas de Paris e de todas as partes do território francês após o primeiro turno, não se apresenta como fato isolado.
Edgar Morin transmite uma advertência que tem motivação em conhecimento de causa, e que os eleitores franceses, especialmente os jovens, parecem ter visto e refletido. Em março de 2015, numa memorável entrevista, Morin revelou ter dois arrependimentos ao longo de sua trajetória política e intelectual. O principal deles foi seu pacifismo antes da Segunda Guerra Mundial, que o “impediu de enxergar a verdadeira natureza do nazismo.”
E assim, para de algum modo compensar esse erro de avaliação, cometido em sua juventude, entrou para a Resistência Francesa durante a Segundo Guerra, tendo atuação destacada, corajosa, quando adotou o codinome “Morin” em substituição ao sobrenome familiar judeu sefardita Nahoum. Morin aprendera uma lição, e partir daí se transformaria num ativo resistente a qualquer ideia de reinvenção do nazifascismo ao longo de sua trajetória esplêndida e exemplar.
Entre os acertos e erros de sua monumental vida, Edgar Morin acertou quase sempre. Esse incomparável pensador da transdisciplinaridade, com legado formidável no campo da educação, da civilização, das questões ambientais, da crítica, da ética, autor de 70 livros, o último deles “Lições de um Século de Vida”, quando celebrou seu centenário, em 2021. É quase impossível dar conta da importância de suas contribuições científicas, filosóficas, antropológicas, sociológicas, pedagógicas.
Em quase toda direção à qual a gente se movimente, vamos encontrar Edgar Morin no caminho, dizendo a cada um de nós que não é só importante viver. Mas, além disso, e muito mais importante, é preciso saber viver. Esse é um ensinamento que ele nos traz, que nos torne capaz de tratar não apenas das questões pessoalmente essenciais, mas como viver na nossa civilização, numa sociedade de consumo sem filtro, em que há informação demais e conhecimento de menos, mais contradições do que consenso, mais intolerância do que harmonia, mais domínio do que disposição para reformar e corrigir em função do bem coletivo.