A preocupação com o crescimento do racismo está levando o Brasil a submeter ao Conselho de Direitos Humanos da ONU, ainda agora no mês de junho, um projeto de resolução que torne clara a incompatibilidade entre essa prática e a Democracia. O projeto é uma ideia antiga, ainda do primeiro governo Lula, que foi abraçada lá atrás, pela Organização das Nações Unidas, nos governos que se seguiram até Michel Temer, mas foi descontinuada logo que Jair Bolsonaro chegou ao poder.
Ainda em 2019, no ano em que tomou posse, o governo passado resolveu interromper a sequência do projeto e o então ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, tentou esvaziar o esforço da comunidade internacional para criar formas de pressão sobre os governos para lidar com rigor nessas questões do racismo.
Campanha da ONU
A ONU lançou recentemente uma tocante campanha de combate ao racismo no mundo, tentando despertar as pessoas para uma realidade muitas vezes camuflada, mostrando vídeos com depoimentos de pessoas que sofreram com esse tipo de ação e como enfrentaram essas situações. Os vídeos foram divulgados nas plataformas digitais da ONU, lançados no Dia Internacional em Memória das Vítimas da Escravidão e do Comércio Transatlântico de Escravos.
Muitos desses depoimentos foram bastante impactantes, sendo impossível ignorar um passado deplorável e uma realidade assustadora que o mundo vive, ainda pior, pois parece de maneira crescente. O Brasil, especialmente, sabe muito bem o que é isso, pois este país foi um triste protagonista do trabalho escravo, usando negros africanos para fundar seu projeto de nação.
Não foi sem razão que o antropólogo e escritor Darcy Ribeiro lamentou em uma das suas corajosas manifestações, ao dizer que a mais terrível de nossas heranças é esta de levar conosco a cicatriz de torturador impressa na alma e pronta a explodir na brutalidade racista e classista.
Comércio de escravos
O comércio de escravos, sobretudo no uso de negros africanos, sustentou a formação econômica em várias partes do mundo e durou mais de 300 anos em terras brasileiras. Foi a maior remoção forçada de pessoas na história da humanidade, movimentando entre 12 e 14 milhões de africanos que, capturados, eram jogados em porões de navios e submetidos a trabalho forçado, sem remuneração e sem garantia de qualquer direito, em condições plenamente degradantes. A ONU já declarou essa prática hedionda como crime contra a humanidade.
Herdeiro desse passado vergonhoso, o Brasil nunca se livrou nem das mazelas, nem do espírito que fizeram tal anomalia prevalecer. Vive, então, até hoje, um ambiente de discriminação racial, ou crime de ódio, muitas vezes manifestado de forma violenta, tem presente um visível racismo institucional, expresso por instituições públicas e particulares, e tem muito claramente o racismo estrutural, presente num conjunto de práticas, hábitos, situações e falas que promovem as desigualdades, aceleram a segregação e as injustiças.
Mal enraizado
Uma das maiores preocupações nesse terreno, é que o racismo existe, mas se encontra de maneira praticamente imperceptível, em muitos casos expressando-se de modo “espirituoso”, como se costuma dizer, na forma de humor. É um mal enraizado, quase sempre camuflado. Lembro aqui, por oportuno, uma história contada pela consagrada escritora Ruth Rocha, com uma vida literária muito dedicada às crianças e adolescentes.
Ela conta que deu de presente “ a uma menina moreninha de quem gostava muito Reinações de Narizinho. Ela me disse: “ Você não fica triste? Não gostei do livro. Tem muita coisa feia.: “ negra beiçuda, negra macaco”….Respondi: “ Não estou triste. Você tem toda razão. Percebi que ofendia a menina. Assim eu, a maior fã do Monteiro Lobato, que me influenciou muito, não posso dar um livro dele a uma criança.”
Em pleno século 21, a despeito de todos os esforços promovidos por instituições ligada às causas humanitárias, o Brasil vê crescer o aumento de casos de racismo, conforme atestam denúncias acolhidas pelo Painel de Dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos. No ano de 2022 foram recolhidas 1.663 denúncias de racismo em seus anais de registro, contra 1.470 registradas em 2021. São Paulo, Minas, Rio de Janeiro e Estados do Sul são os campeões em denúncias.
Pesquisa
Uma pesquisa realizada agora no mês de março, na comemoração do Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial, feita pela consultoria Trilhas de Impacto, revelou que 86% das mulheres negras já sofreram casos de racismo nas empresas em que trabalham. Mais espantoso ainda: Dos assassinatos ocorridos em 2021 no Brasil , 77,9% das vítimas eram negras, sendo 91,3% do gênero masculino.
Um dado curioso revelado por outra pesquisa, esta do PoderData, indica que 81% dos brasileiros confessam haver preconceito contra negros, 13% dizem não existir preconceito, mas num assustador percentual, 34% assumem que sim, que nutrem preconceito contra a raça negra. No Estado de São Paulo, dados da Secretaria de Justiça e Cidadania indicam um crescimento dos casos de discriminação racial neste 2023. Nos primeiros meses do ano, já foram registrados 265 casos de discriminação pelos canais de denúncias da secretaria. O número já é maior do que o total registrado entre 2019 e 2021, quando foram 251 casos.