O Brasil acompanha, com tristeza e preocupação, as tragédias climáticas que se abatem sobre o Rio Grande do Sul e parte do Sul do país, deixando um rastro doloroso de mortes de humanos e animais, e uma destruição material muito elevada, demolindo moradias, bens públicos, pontes e estradas, e acabando com plantações agrícolas. Na sequência dessas enchentes que fazem transbordar barragens, elevando de modo espantoso o nível de rios e lagoas, chegam as doenças que afetam a todos, especialmente crianças e idosos.
O que está acontecendo agora, numa repetição muitíssimo potencializada dos episódios registrados no ano passado, quando grandes enchentes já haviam causado muitas mortes e estragos materiais importantes, não acontece simplesmente por acaso. Em menos de um ano, quatro desastres climáticos atingiram o Rio Grande do Sul. Em 2023, três eventos ocorreram em junho, setembro e novembro, deixando 80 mortos. Vê-se, assim, que se trata de um ciclo histórico que teve um ápice no ano de 1941, mas este de agora, já é o maior de toda a história.
Não é algo que pode ser colocado na conta apenas da natureza, uma catástrofe inevitável. Todos os alertas possíveis foram feitos às autoridades sobre os riscos que haveriam em futuro próximo, sobre a necessidade de se adotar urgentes medidas de contenção, mas nada, simplesmente, foi feito no sentido de prevenção. O Rio Grande do Sul, que tem o justificado orgulho de ser uma liderança nacional na produção de grãos, com forte influência na balança comercial do Brasil, deve arcar, no mesmo grau de sentimento, com a responsabilidade de haver promovido uma severa devastação do ambiente natural do Estado.
E o pior é que, ao contrário disso, de atuar para remediar, ao menos, os riscos de tragédias, os governantes não fizeram nada e as agressões ao meio-ambiente continuaram de forma desenfreada.
O professor do Departamento de Ecologia do Instituto de Biociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Valério Pilar, que há mais de 20 anos adverte para a incidência repetida desses desastres, afirma que em seu Estado tornou-se natural um conceito: “derrubar uma floresta é um problema, mas devastar o campo nativo não é.”
E diz que o Pampa está nesse segundo caso. É esse bioma que sustenta o equilíbrio ecológico no território gaúcho, e vem sendo destruído de maneira espantosa. Em todo o território existem apenas 49 unidades de conservação, alcançando pouco mais de 3% de sua extensão de 17,6 milhões de hectares, pois as terras foram ocupadas sem qualquer critério de preservação pelas lavouras de soja e as florestas artificiais de eucalipto.
Ele alerta que ocorreu o afrouxamento da fiscalização, a opção pela monocultura e os agrotóxicos, o papel cúmplice dos governos com a destruição da natureza e a ação suicida do agronegócio, entre outros pontos.
Ao ser indagado se os Pampas vão acabar, ele seguramente responde:
“No ritmo em que a transformação dos campos nativos em lavouras e silvicultura está acontecendo, vai acabar. Vão restar as áreas que realmente não podem ser cultivadas, solos muito rasos, rochosos. O mapa atual de remanescentes de campo mostra as áreas que estão sobre solos muito pouco adequados à agricultura mais intensiva.”
Ao defender a necessidade urgente de um zoneamento agrícola para o Rio Grande Sul, o professor Valério Pillar não mede palavras:
“É necessário, sim, um zoneamento. O ideal seria isso. O problema é que a ambição, o interesse econômico, é tão forte que se sobrepõe a qualquer outro interesse da sociedade. Quer dizer, como sociedade, seria interessante que esses municípios em zonas mais vulneráveis à seca ou às torrentes tivessem uma economia menos dependente da agricultura. Mas, não. Eles se metem lá a plantar soja, sabendo que é arriscado e talvez sabendo que, se der ruim, o Estado vai apoiar, aqueles que tiraram financiamento vão poder jogar para diante aquela dívida. Socializa o prejuízo. Estamos nesse estilo há décadas.”