O notável brasileiro Josué de Castro recebeu nesta quarta-feira,6, na sede da FAO, em Roma, uma merecida homenagem dessa instituição da Organização das Nações Unidas- que ele dirigiu entre os anos 1951 a 1955-, notabilizando-se nos meios acadêmicos e na pesquisa científica por ter sido o primeiro intelectual a chamar a atenção do mundo para o problema da fome.
A homenagem consistiu no lançamento do livro sobre o pensamento do escritor, professor e pesquisador, intitulado “Josué de Castro e a Diplomacia da Fome”, uma obra organizada pelo ex-ministro Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome do Brasil e ex-diretor da FAO, José Graziano da Silva, pela embaixadora Carla Barroso e pelo diplomata Saulo Ceolin.
Autor de obras fundamentais para a compreensão da fome e da desnutrição, precursor desse tema em todo o mundo, José de Castro sonhava com uma FAO ( agência da ONU para Alimentação e Agricultura) que fosse capaz de poder intervir diretamente junto aos subnutridos da terra, não apenas com o fornecimento de técnicas e avanços científicos que permitissem aumentar o volume de alimentos à disposição de todos, mas também no fornecimento do próprio alimento a populações vulneráveis nas mais variadas partes do mundo.
A fome, à sua época, não tinha alcançado ainda as dimensões gigantescas que assumiram nos dias atuais, mas já no momento em que deixou a presidência da FAO, em 1955, Josué fazia um discurso de desalento, dizendo-se “desiludo com o que fizemos até agora, porque, na minha opinião, ainda não produzimos uma política alimentar realista, que tenha em conta as necessidades desesperadas do mundo como objetivos nossos. Não fomos suficientemente corajosos para encarar o problema de frente e procurar soluções. Limitamo-nos à superfície, sem penetrar no seu âmago, o cerne do problema, sem querer resolvê-lo de fato, após anos de intenso trabalho na FAO e de outras organizações internacionais, a fome continua a assolar o mundo mais ou menos na mesma proporção.”
O que diria Josué de Castro, hoje, olhando para o planeta Terra e constatando que apesar de seus esforços extraordinários e do seu desencanto ao deixar a presidência da FAO, depois de sua morte as desgraças só fizeram aumentar de tamanho e velocidade?
Relatórios recentes da própria ONU, como o que foi divulgado nesse último mês de julho, dão conta que no mundo todo são hoje 735 milhões de pessoas passando fome e 2,3 bilhões de seres humanos submetidos a situação de insegurança alimentar, e o número de desnutridos e de mortes decorrentes dessas condições só fazem aumentar a cada dia, agravando-se, sobretudo, em razão de guerras internas em muitos países africanos, conflitos sangrentos entre nações (a exemplo de Rússia e Ucrânia, Israel e Palestina), e de tragédias climáticas crescentes em todas as partes do planeta.
A propósito de tragédias ambientais, Josué de Castro merecia monumentos em todos os pontos visíveis do que nos resta de mundo civilizado, pois foi ele que, muito além da sua incansável batalha contra a fome e a desnutrição, tornou-se um dos mais notáveis intelectuais brasileiros a denunciar as condições de devastação ambiental por que passaram as terras do Nordeste brasileiro, desde os mangues à beira de lagoas de Pernambuco e Alagoas, até a exploração irresponsável da mata atlântica de toda a região, tomada pela invasão indiscriminada dos plantadores de cana-de-açúcar.
Foi José de Castro, nos diversos livros que publicou, como Geografia da Fome, Geopolítica da Fome, Homens e Caranguejos, quem realizou profunda pesquisa, documentando suas denúncias sobre o domínio das “ terras boas” do Nordeste, do ‘filé”, que era a mata atlântica, levada ao chão, transformada em cinzas, para que os usineiros nordestinos utilizassem as terras de enorme fertilidade para o plantio de cana.
Aos pobres da região, como ele já denunciava, sobravam apenas as terras inóspitas do sertão, das caatingas, privadas de água, de chuvas e, portanto, inadequadas para as lavouras de subsistência que os sertanejos careciam. Tangidos das terras férteis, de seus espaços de sobrevivência digna à beira de rios e lagoas, da pesca abundante e do plantio próspero de seus alimentos, passaram a sofrer dos males do exílio em seu próprio lugar, num processo criminoso que se arrasta desde os tempos da colonização portuguesa.
Josué de Castro é o tipo de brasileiro que merece e precisa estar permanentemente na lembrança nacional como o que temos de melhor. A notoriedade com que ele elevou a obra científica que publicou, e o fato de ter sido representante do Brasil nas Nações Unidas, em Genebra, mereceram o acolhimento da universidade e da academia de Paris, onde foi notável professor. Atingido pelo governo militar de 1964, foi um dos primeiros intelectuais do país a ter seus direitos políticos cassados, impedido de voltar à terra a que tanto se dedicou.
Deprimido, como contam seus amigos, morreu em Paris, em 1973, com apenas 65 anos de vida. Mas seu pensamento, um verdadeiro divisor de águas sobre a história da fome e da subnutrição, permanece vivo, e ainda haverá de ser fonte de inspiração e soluções para todos os que pretendam encontrar saída a essa vergonhosa tragédia, indigna e desumana, que se abate sobre milhares, e que precisa um dia acabar. Quando, de fato, pararem para ouvir Josué de Castro, isso talvez seja possível.