Ao ver, hoje, Padre Júlio Lancellotti recorrer a um vídeo antigo de uma entrevista de Dom Hélder Câmara, numa forma de antecipar a explicação que deverá dar a uma CPI anunciada contra ele na Câmara de Vereadores de São Paulo, foi impossível não estabelecer uma ligação íntima sobre a conduta, a forma de atuar, a gigantesca dimensão humana e o elevado espírito e prática cristãos que identificam e unem o antigo arcebispo de Olinda e Recife e o sacerdote atual que, na maior cidade do país, resolveu de maneira ampla e profunda abraçar as causas dos pobres e desvalidos da capital paulista.
Na entrevista que Padre Júlio nos faz reviver, concedida em 1987, logo após a redemocratização do Brasil, Dom Hélder conta que “houve um tempo, aqui, em que era assim: se um leigo, uma religiosa, um padre, um bispo, trabalhava diretamente com o povo, dizia-se, “meu Deus, é um santo”. Mas quando essa pessoa, mesmo continuando a ajudar o pobre, tinha a audácia de falar em justiça, já viu palavra mais perigosa, “justiça”, falar em promoção humana, imediatamente era chamado de comunista.”
Daí, vem uma das frases mais massificadas de Dom Hélder, ainda lembrada após 24 anos de sua morte: “Quando dou comida aos pobres, me chamam de santo. Quando pergunto porque eles têm fome, me chamam de comunista.”
OPÇÃO CORAJOSA
Pelas perseguições que passaram Dom Hélder Câmara no decorrer de seu sacerdócio em Recife, exatamente pela decisão inabalável de abraçar as causas, as lutas e os sonhos das populações pobres, também passa já há bastante tempo o padre Júlio Lancellotti, sem dúvida alguma em decorrência da opção corajosa que fez pelas populações de rua da maior cidade do país, centro dos negócios e indutora das políticas governamentais ao longo da história.
Abraçar gente que vive nas ruas, sem lenço e sem documento, sendo incontáveis entre eles os que se tornaram vítimas do uso de drogas, não parece ter sido uma boa escolha de Padre Júlio aos olhos dos que detém o poder econômico e o poder político, senhores e senhoras capazes de influenciar, no dia-a-dia de cada um de nós, os rumos que devem tomar o país além das fronteiras paulistanas. Na visão de muitos, São Paulo não pode ter moradores de rua enfeiando a cidade, não pode abrigar as cracolândias da vida, não sendo, assim, admissível quaisquer formas de atenção que signifique ajuda e proteção, ou busca de reparo. Já vi, muitas vezes, em redes sociais, a defesa do extermínio dessas populações.
Dom Hélder sofreu horrores praticados por aqueles que o escolheram como inimigo mortal. Teve, inclusive, sua residência diocesana metralhada por seguidores alucinados do regime militar que fez vítimas dezenas de jovens, estudantes, religiosos, defensores dos direitos humanos, inclusive com a morte de padres de sua Diocese. Quatro vezes tendo o nome indicado para receber o Prêmio Nobel da Paz, Dom Hélder nunca viu a honraria configurada. O Governo do general Médici, conforme mostram documentos oficiais posteriormente revelados, montou uma força-tarefa de relações exteriores para impedir a premiação do “comunista.”
Estúpida perseguição repete-se agora contra Padre Júlio Lancellotti, um religioso cuja ação evangélica é reconhecida internacionalmente, inclusive com referências notáveis do Papa Francisco, como as contidas na sua fala durante a celebração do Angelus, em 11 de outubro de 2020:
“Ontem, consegui ligar para o padre italiano idoso, missionário da juventude no Brasil, mas sempre trabalhando pelos excluídos, pelos pobres. E vive essa velhice em paz. Consumiu a sua vida com os pobres. Essa é a nossa Mãe Igreja, este é o mensageiro de Deus”, disse o Papa Francisco.
Naquele momento de outubro de 2020, o Papa Francisco revelava o tom da conversa que tivera, no sábado anterior, com Padre Júlio Lancellotti, e lhe disse, em tom de apelo:” Não desanime, mesmo diante de todas as dificuldades, e continue seu trabalho junto aos pobres.”
Papa Francisco estava certo, e de algum modo parece ter antecipado em quatro anos a necessidade crescente que Padre Júlio Lancelotti precisa incorporar a sua missão. De muita solidariedade, apoio, encorajamento, para ajudar a barrar a fúria ensandecida de uma tropa mesquinha, perversa, desprovida de censo humano, cujo sentimento mais provável é ver prevalecer o império das trevas, o contrário, seguramente, do que pregou Jesus e do que proclamam os Evangelhos.