No decorrer da semana passada, em várias partes do Rio Grande do Sul, incluindo Porto Alegre, surgiu algo aparentemente novo. Quando as pessoas ficaram dias seguidos sem energia elétrica, os computadores não funcionam, as baterias de celulares descarregaram, daí sumindo internet e redes sociais e todos os aplicativos, deixando todos sem contato ou acesso a qualquer fonte de informação digital, um velho e esquecido amigo socorreu muita gente nas suas necessidades e apelos.
Foi ele, o rádio de pilha, essa revolucionária invenção dos anos 1950, hoje praticamente esquecida por todos nesta nossa sociedade do descarte. Ele reapareceu com toda sua utilidade. Nesse momento dramático das enchentes que se abatem sobre o Rio Grande do Sul, com danos e mortes irreparáveis, em que todos os meios de comunicação pessoal sumiram do mapa, foi o radinho de pilha que voltou às mãos das pessoas, trazendo a cada um a informação sobre sua cidade, seu bairro, sua região, atualizado-as e, de algum modo, tranquilizando-as.
O radinho de pilha, esse objeto analógico, que para muitos ainda serve para fazer conexões nostálgicas com o passado, ou como peças de decoração em muitos lares e escritórios, teve agora sua chance de utilidade que quase todos achavam perdida. E esse episódio de sua utilização abrangente nessa tragédia do Rio Grande do Sul, serve para que possamos fazer uma reflexão, uma concentração mental, que seja capaz de entender o que estamos fazendo com as nossas vidas e o nosso ambiente, nesse ímpeto acelerado por novas tecnologias, pela não conservação das coisas e dos lugares em que vivemos.
Somos uma sociedade de consumo extremo e de busca do lucro a qualquer custo. Por essa deplorável deficiência humana, temos jogado no lixo muita coisa que poderia ser útil e até mesmo nos salvar. Pelo encantamento pelo novo ou pelo afã de encher os cofres, vamos dizimando a natureza, jogando no lixo bens que poderiam nos servir no futuro ou servir a outras pessoas no presente, tocando fogo nos livros impressos porque parece mais bonito e mais fácil ler livros digitais.
Somos capazes de desmatar ou tocar fogo em florestas, dizimar biomas naturais, como fizeram com os Pampas gaúchos e fazem todo dia contra Cerrados e Caatingas, porque é mais fácil correr as máquinas em terras limpas, sem empecilhos. Somos uma lastimável sociedade dominada pela corrida ao consumo do novo, do atraente, e pelo domínio do econômico sobre o humano. Não temos qualquer zelo pela conservação, pela preservação, nem pela restauração.
Lembro que quando surgiu a televisão no Brasil, dizia-se que o rádio iria acabar, e pouca gente se importava que isso acontecesse. O rádio seguiu seu caminho notável, firme, informando, educando, prestando serviço inestimável. O surgimento do radinho de pilha, que agora se posta como salvador improvável, serviu para que o poder do rádio aumentasse, porque suas transmissões agora eram levadas debaixo do braço, quer por jovens nas suas festinhas improvisadas, quer por frequentadores de praias e piqueniques, quer por homens da roça, conduzidos no lombo de animais ou por trabalhadores urbanos em suas bicicletas.
Sinto que me nutro de todas as razões do mundo para continuar ouvindo rádio, mantendo nossa biblioteca doméstica enriquecida por antigos e novos livros, e guardando, como relíquias, dezenas de discos de vinil ( que têm sido reinventados), dando atenção amorosa aos nossos ambientes naturais, sempre entendendo que é possível a produtores rurais obter seus justos lucros sem o ímpeto de destruir a natureza, parando de criar as condições para que as tragédias climáticas se avolumem na forma como têm acontecido.
Quando as tragédias se abatem e surgem as perguntas sobre as razões de terem acontecido, os que são responsáveis pela destruição costumam se esconder, ficar calados e imóveis. Mas nós sabemos a resposta.
O uso do radinho de pilha no Rio Grande do Sul, nos mostra o papel e a importância que o meio rádio desempenha no serviço às pessoas e obriga ter uma reflexão sobre o que estamos fazendo com as nossas vidas. É urgente que se dê um basta na destruição, nessa prática irresponsável de consumo, do descarte e do desmonte. E se tenha um mínimo de respeito e apreço ao passado, preservando e restaurando no presente.