Por Sávia Barreto
Em menos de uma semana, dois casos de violência policial no Piauí chamam a atenção para a correlação entre política, direitos humanos e legalidade. O primeiro caso ocorreu em uma delegacia em Piripiri. Um vídeo mostrava dois policiais militares espancando um homem preso e algemado, dentro da delegacia. O segundo caso foi o de uma policial militar que também foi flagrada em vídeo agredindo um suspeito de praticar assalto a uma papelaria no bairro Dirceu Arcoverde II, zona Sudeste de Teresina.
O fuzilamento no Rio de Janeiro no início de abril com mais de 80 tiros que matou o músico Evaldo Rosa dos Santos e o catador Luciano Macedo, e deixou outra pessoa ferida, já havia acendido a luz vermelha sobre a violência praticada por agentes do Estado. Com os dois casos recentes no Piauí, alguns pontos podem ser levantados na complexa relação entre a população, farta da alta taxa de criminalidade, e a polícia, que não pode deixar seu papel de só usar a força em caso de necessidade (o que não condiz com agredir suspeitos já detidos e em poder do Estado).
Ao viver em sociedade e colocar o monopólio da violência nas mãos do Estado, decidimos que aqueles que não cumprirem as regras que estabelecemos como corretas, devem ser punidos. A punição vem através das instituições e sistemas legais. Se nós mesmos punirmos como bem quisermos uns aos outros, não haverá mais motivo para o Estado existir e retornamos à barbárie, onde cada um que tiver meios e poder, causará dor àqueles que julgar estarem desobedecendo acordos sociais.
PRISÃO DE POLICIAIS É RECADO DO COMANDO DA PM-PI
Apesar de existir uma espécie velada de "autorização" da população para a brutalidade policial (ou praticamente uma torcida, vide tantas tentativas de linchamento registradas em casos como roubos na rua onde o suspeito é pego no flagra por populares), o comando da Polícia Militar no Piauí tem agido rápido e de maneira eficaz ao determinar a prisão dos militares acusados nos dois espancamentos a acusados. Deixa assim, o recado aos demais PMs: quem for pego praticando tortura a suspeitos que estejam sob a responsabilidade do Estado, será punido rápida e exemplarmente.
Naturalmente, essas prisões são temporárias e os PMs deverão cumprir todo o posterior processo legal para tentar provarem-se inocentes ou justificarem os atos – apesar de todas as provas em vídeo e áudio deixando claro o flagrante e a ilegalidade das práticas.
POLICIAIS NO FIO DA NAVALHA
É importante reconhecer que o trabalho policial deixa o profissional que atua na rua no fio da navalha. A população clama pela punição imediata, a injustiça dos assaltos, roubos e demais violências cotidianas a que todos terminamos submetidos revolta de maneira explosiva. Ser policial é ter que implementar ali, no quente do momento, uma solução imediata para problemas complexos e com o adicional do fator imprevisível. Não é fácil e, por isso mesmo, há todo um protocolo e treinamento prévios que orientam para a ação.
O QUE A PM DO PIAUÍ PODE FAZER PARA EVITAR NOVOS CASOS?
Cabe agora ao comando da PM reforçar que esses protocolos e métodos ensinados aos aspirantes a policiais piauienses não fiquem na teoria e sejam realmente aplicados na realidade. É preciso ainda monitorar o trabalho dos policiais e premiar aqueles que se destacam com práticas positivas. Apenas prender os que se desviam, excedem a força e usam função para praticar violência gratuita, não é suficiente.
Uma polícia violenta, que excede o que seu papel legal determina, torna a sociedade como um todo mais vulnerável, dificulta a confiança dos grupos mais pobres e estigmatizados e termina, por fim, obstruindo a cidadania. Se hoje é o bandido que apanha sob aplausos da população e replicação de palmas nos grupos de Whatsapp, amanhã pode ser um músico, indo para um chá de bebê, levando 80 tiros em um desastre de excesso de uso da força.
GOVERNO BOLSONARO ENCORAJA
Não se pode deixar de citar o encorajamento político da violência na gestão de Jair Bolsonaro (PSL). Em agosto de 2018, em entrevista ao Jornal Nacional, o então candidato a presidente disse que criminoso não é "ser humano normal" e defendeu policial que "matar 10, 15 ou 20". "E dar para o policial, dar para o agente de segurança pública, o excludente de ilicitude. Ele entra, resolve o problema. Se matar 10, 15 ou 20, com 10 ou 30 tiros cada um, ele tem que ser condecorado [o policial] e não processado", afirmou na época.
Há também o pacote anticrime do ex-juiz Sérgio Moro, hoje ministro da Justiça, que almeja alterar artigo 23 do Código Penal, que trata das exclusões de ilicitude (as condições em que uma pessoa não é punida mesmo cometendo um crime). O artigo destaca que eventuais excessos na legítima defesa serão punidos. Moro deseja a seguinte mudança: “O juiz poderá reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicá-la se o excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção”.
Traduzindo: qualquer um - especialmente policiais - podem sair sem punição caso excedam em violência a algum crime. Discurso e legislação, juntos, em incentivo à mais violência policial ao invés de trabalhar as questões de fundo que levam ao descontrole das taxas de criminalidade, como a política de combate às drogas e a possibilidade de unificação das polícias.
A SOLUÇÃO? A PALAVRA
Se não há solução há curto prazo, há ao menos esperança. Vou empresta-las do psicanalista Christian Dunker: “A melhor forma de tratar a violência ascendente no Brasil de hoje, bem como seu efeito sintomático, que é o ódio, está na retomada da palavra como experiência de reconhecimento. Se nossos policiais trocassem duas ou três palavras antes de atirar, deixaríamos de ser a polícia que mais mata ao sul de Gaza”.