A cada dez pacientes intubados com Covid no Brasil, oito deles morrem

Especialistas apontam que reação errática do governo à pandemia e inexperiência de parte das equipes em unidades de terapia intensiva contribuem para o cenário

Enfermeira acompanha paciente internada com Covid-19 em UTI de Salvador | Enfermeira acompanha paciente internada com Covid-19 em UTI de Salvador Foto: Agência O Globo
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Entre novembro de 2020 e março deste ano, oito a cada dez pacientes com Covid-19 intubados em unidades de terapia intensiva (UTIs) do Brasil morreram, segundo dados do Ministério da Saúde compilados por pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) e da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). A taxa de mortalidade de pacientes internados no país, de 83,5%, é uma das maiores do mundo.

No sábado, O GLOBO mostrou que quatro a cada dez mortes por Covid-19 em hospitais no país se dá sem que o paciente sequer chegue à UTI. Especialistas dizem que a alta taxa de mortalidade é reflexo da ausência de profissionais treinados, além de problemas de gestão e justamente da longa espera por leitos nos hospitais, agravada pela escalada da doença.

Os dados sobre a mortalidade vêm do Sistema de Vigilância Epidemiológica da Gripe (Sivep-Gripe) e foram compilados por pesquisadores da Rede Brasileira de Pesquisa em Medicina Intensiva, coordenada por Fernando Bozza.

Enfermeira acompanha paciente internada com Covid-19 em UTI de Salvador- Foto: O Globo

Um outro estudo do grupo, publicado na revista The Lancet Respiratory Medicine, já havia revelado que as taxas brasileiras de morte de pacientes intubados com Covid-19 entre março e 15 de novembro de 2020 era de 77,8%. O número já era superior, no período, ao do Reino Unido (69%), Itália (51,7%), Alemanha (52,8%) e México (73,7%).

Segundo Bozza, uma das explicações para a alta mortalidade nas UTIs brasileiras foi a política errática do governo federal em relação ao combate ao coronavírus:

— O Brasil perdeu muito tempo em 2020 com irrelevâncias, como medicamentos sem eficácia, e a chance de incorporar as melhores práticas e políticas que são de fato eficientes, como treinar equipes de UTI e reduzir a transmissão — afirma.

Para Luciano Azevedo, professor de Medicina da USP que atua na UTI do Hospital das Clínicas, em São Paulo, morre-se mais com Covid nas UTIs brasileiras graças à longa espera nas filas de leitos, ao controle inadequado de comorbidades, como diabetes, e à falta de pessoal qualificado. Soma-se a isso o atraso na ida às emergências de pacientes que acreditam combater a doença com remédios como a ivermectina e a cloroquina, comprovadamente ineficazes contra a doença.

Nos hospitais, a luta dos pacientes por um dos 20.865 leitos de UTI do país, que em estados como São Paulo estão com 91,6% de ocupação, é só o começo. Com quadros mais graves de complicações, aqueles admitidos nas UTIs deparam com a escassez de respiradores e remédios, instalações improvisadas e profissionais sobrecarregados, exaustos física e emocionalmente — muitos contratados às pressas durante a pandemia, recém-formados e sem especialização ou experiência para atuar em UTIs.

— O cuidado intensivo brasileiro médio é, principalmente agora na pandemia, inferior ao padrão. Sem equipe preparada, há maior mortalidade e alta incidência de infecções e complicações — diz Luciano Azevedo.

Inexperiência e erros

Um paciente na UTI exige a atenção de uma equipe multidisciplinar, que inclui enfermeiros, fisioterapeutas, além dos médicos intensivistas. Com profissionais sem formação na área ou inexperientes tratando doentes graves, aumentam as chances de erro em diversos procedimentos, explica Azevedo. Há intubações que lesionam a traqueia do paciente, cateteres que acertam vasos e causam sangramentos em órgãos, pneumonias associadas ao uso do respirador ou infecção causada pela sonda urinária.

A sepse, inflamação generalizada causada por infecções e que pode levar à falência de todos os órgãos, é a principal causa de mortes em UTI no Brasil, sendo responsável por 65% dos óbitos. A média mundial varia entre 30% e 40%, segundo o Instituto Latino-americano de Sepse.

Os dados mostram que a letalidade entre intubados em UTIs é, hoje, ainda pior no Norte (90,8%) e Nordeste (89,9%), caindo para 79% no Sudeste. Além das disparidades regionais na qualidade do atendimento, pacientes internados na UTI de um hospital público de referência ou na rede privada pode ter mais chances de sobreviver, segundo os pesquisadores.

No Instituto de Infectologia Emílio Ribas, também em São Paulo, referência da rede pública e com profissionais experientes, a letalidade de intubados é de 36%, segundo Jacques Sztajnbok, chefe de UTI do hospital. A taxa muito abaixo da média nacional reflete um país de realidades distintas. Na prática, um paciente intubado na UTI do Sírio ou do Emílio Ribas teria de duas a três vezes mais chances de sobreviver do que a maioria dos internados pelo país.

— Abre-se UTI e acham que tudo está resolvido, mas paciente com Covid-19 é de extrema complexidade. Qual a formação das equipes e o suporte que recebem? Há hospitais em São Paulo com 80% de morte de intubados. Mesma doença, época e equipamento. O que afeta é a defasagem técnica. Mas não se forma gente capacitada da noite para o dia, é trabalho contínuo — diz Sztajnbok.

No limite

O aumento nas filas também tem levado às UTIs pacientes mais complexos. Por isso, mesmo hospitais que investiram em capacitação e novas técnicas — como adoção do corticoide dexametasona para conter a inflamação em pacientes graves — estão operando no limite. A equipe de Sztajnbok lida hoje com pacientes graves de até 28 anos, sem comorbidades. Os casos impressionam pela rápida deterioração, exigência de manobras complexas, dificuldades para intubar e extubar e prognósticos de recuperação lenta e demorada.

Ricardo Schnekenberg, médico da Universidade de Oxford e membro do grupo do Imperial College, que analisa a dinâmica do vírus no Brasil, diz que a melhor estratégia a curto prazo para reduzir a pressão das UTIs sobrecarregadas continua sendo não depender de leitos. Para isso, ele defende receita conhecida: conter a transmissão do vírus e vacinar a população.

— A alta mortalidade no Brasil reflete problemas estruturais que não estão sendo atacados e não serão resolvidos no curto prazo. Por isso, é necessário controlar e reduzir a transmissão usando as medidas eficazes conhecidas, como distanciamento — diz.

No Reino Unido, o sistema público de saúde investiu no aprendizado das equipes que lidam com o vírus há um ano, adotou novos protocolos e diminuiu a sobrecarga sobre o sistema. Desde agosto, a mortalidade de pacientes hospitalizados, no geral, não passa de 18%, mesmo entre idosos com mais de 80 anos, segundo dados de consórcio de especialistas britânicos. 

Procurado pelo GLOBO, o Ministério da Saúde não respondeu sobre a alta letalidade hospitalar do país e as medidas tomadas para reduzir tais índices.

Com informações do O Globo.

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