Um parecer do Cremesp (conselho médico paulista) proibiu as visitas virtuais de familiares a pacientes com Covid-19 na UTI ou nas emergências. As videochamadas foram adotadas por vários hospitais como forma de manter o contato do doente com a família diante das rígidas restrições de acompanhantes na pandemia.
No parecer, solicitado por um médico, o Cremesp lembra que outros pareceres de 2016, ou seja, pré-pandemia, já vedaram filmagens ou fotos de pacientes em sala de emergência e UTI. O conselho também entende ser "absolutamente proibida" a exposição de pacientes sedados ou em coma, uma vez que o seu consentimento é impossível nessas condições e, além disso, não haveria "a alegada interação com os familiares".
Diversas entidades médicas de cuidados paliativos, de medicina intensiva e de de psico-oncologia se posicionaram contra o parecer do Cremesp.
Elas afirmam que a pandemia agravou o sofrimento mental dos pacientes críticos e de seus familiares pelo afastamento compulsório, um fato reconhecido por instituições de saúde e sociedades científicas de todo o mundo. Em razão disso, várias recomendações foram publicadas sobre como utilizar as visitas virtuais para mitigar o sofrimento, incluindo medidas de segurança para salvaguardar a confidencialidade do paciente e preservá-lo de exposições indevidas em redes sociais.
"Há anos que as pessoas intubadas na UTI tiveram o direito conquistado de receberem visitas. Com a pandemia, as visitas deixaram de ser presenciais e se tornaram virtuais", diz o geriatra Douglas Crispim, presidente da Academia Nacional de Cuidados Paliativos.
Segundo ele, ao proibir essas visitas o conselho tira a única chance da despedida de casais e filhos, por exemplo, que, muitas vezes, não terão nem mesmo a possibilidade de fazer um velório.
Parecer esquece de outros direitos que o paciente e os familiares têm
A advogada Luciana Dadalto, bioeticista e especializada em direito médico, explica que, ao se basear no direito do paciente à intimidade e ao sigilo, o parecer do Cremesp esquece de outros direitos que o paciente e os familiares têm. O doente, por exemplo, tem direito à convivência familiar, e o familiar tem direito à informação. "No momento em que eu tenho direitos que se chocam, preciso ponderar, diante de uma situação concreta qual o direito precisa prevalecer."
De acordo com a advogada, o direito à intimidade e ao sigilo médico são universais, e em vários países foi feita uma ponderação de que, diante desse contexto de pandemia, faz sentido flexibilizá-los para possibilitar visitas virtuais, com normas claras de veto a gravações e à exposição em redes sociais.
Em nota, o Cremesp considera saudável a discussão suscitada pelas sociedades médicas sobre o tema e reforça a importância da interação tanto de pacientes com seus familiares e amigos, de médicos e familiares de seus pacientes e de médicos e pacientes.
No entanto, diz o conselho, as limitações associadas à tecnologia não podem ser ignoradas, principalmente no atual cenário. "Assim, o conselho reitera que o sigilo médico e a privacidade dos pacientes é imperativo nesse contexto. Trata-se de um direito constitucional. O parecer mencionado tem como principal objetivo preservar o sigilo e a dignidade dos pacientes, ao mesmo tempo em que não veda a incorporação de novas tecnologias, como no caso das chamadas por vídeo, por exemplo. Contudo, o uso da tecnologia deve ser sempre racional e prudente, evitando violar o sigilo."
Para o Cremesp, o tema é extremamente dinâmico e, à medida que surgem novas informações, é necessário retomar a discussão entre os diversos atores envolvidos com o exercício da medicina.
Entidades são contra a resolução
O Observatório Direitos dos Pacientes do Programa de Pós-graduação em Bioética da Universidade de Brasília, a Cátedra UNESCO de Bioética da Universidade de Brasília, a Sociedade Brasileira de Bioética e a Sociedade Brasileira para a Qualidade do Cuidado e Segurança do Paciente divulgaram Nota Técnica manifestando sua contrariedade à Resolução nº 347, de 29 de abril de 2021, do Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp), que trata da vedação de chamada de vídeo entre infectados por Covid-19 e seus familiares.
O texto ressalta que "A edição dessa Resolução pelo CREMESP extrapola seu poder normativo e não se coaduna com os ditames do Estado Democrático de Direito, porquanto o Conselho Profissional de Medicina não tem competência legal nem legitimidade para regular privacidade, consentimento informado e decisões substitutas de pacientes, matérias que, por evidência, se encontram no espectro do Direito do Paciente." E conclui: "... a Resolução nº 347, de 29 de abril de 2021, constitui uma extrapolação do poder normativo do CREMESP, em dissonância com o princípio da legalidade".
As entidades defendem a revogação imediata da Resolução e a regulação da matéria, "sem restrição de direitos dos pacientes, pelo órgão de direção do Sistema Único de Saúde."