Karina Toledo | Agência FAPESP – A COVID-19 pode alterar o funcionamento de diferentes órgãos e por isso tem sido considerada uma doença sistêmica. E, mesmo quando se avalia apenas a pequena parcela de infectados que desenvolve insuficiência respiratória, é possível perceber que o SARS-CoV-2 afeta o pulmão de formas variadas.
Em estudo divulgado na plataforma medRxiv, ainda sem revisão por pares, pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) e colaboradores analisaram amostras pulmonares de 47 pessoas que morreram em decorrência de síndrome respiratória aguda grave (SRAG) causada pelo novo coronavírus e identificaram dois padrões bem distintos de dano.
Cinco pacientes (10,6%) apresentaram o que os autores chamaram de “fenótipo fibrótico”, caracterizado pelo espessamento do septo alveolar – estrutura onde ocorrem as trocas gasosas. Ou seja, nesses indivíduos o tecido normal do pulmão lesionado pelo vírus foi substituído por tecido cicatricial (fibrose), o que dificultou a respiração. Em outros dez pacientes (21,2%), classificados como “fenótipo trombótico”, o tecido pulmonar estava praticamente normal. Porém, foi possível notar sinais de coágulos (trombos) em pequenos vasos. Há ainda um terceiro grupo no qual foram incluídos 32 pacientes (68,1%) que apresentaram os dois fenótipos simultaneamente.
A idade média dos pacientes incluídos no estudo foi de 67,8 anos, com proporção semelhante entre homens e mulheres. Todos eram portadores de doenças preexistentes, sendo as mais comuns hipertensão (55%) e obesidade (36%). No momento da admissão hospitalar, 66% apresentavam falta de ar. As complicações clínicas durante a internação incluem choque séptico (62%), falência renal aguda (51%) e síndrome do desconforto respiratório agudo (45%).
As amostras pulmonares foram obtidas por meio de autópsia minimamente invasiva e, depois, fixadas em formol e parafina. Os blocos foram então cortados em lâminas com espessura de 3 micrômetros (µm, o equivalente a um milionésimo de metro), que foram coradas e analisadas por microscopia e imuno-histoquímica (técnica que envolve o uso de anticorpos contra proteínas-alvo, por exemplo, o colágeno). O RNA do SARS-CoV-2 foi identificado em todas as amostras por meio de RT-PCR.
“Partimos de uma avaliação da morfologia do pulmão para, na sequência, estudar o histórico clínico e os exames radiológicos desses pacientes. E foi possível notar, após a análise estatística, que os dados se correlacionavam”, conta à Agência FAPESP o patologista Alexandre Fabro, professor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP-USP) e coordenador da pesquisa. O trabalho teve apoio da FAPESP por meio de três projetos (19/01517-3, 19/19591-5 e 20/13370-4).
Padrão respiratório
No artigo, os autores relatam que, nos dias que antecederam o óbito, os pacientes com o fenótipo fibrótico sofreram um declínio progressivo no índice de oxigenação – medido pela relação entre pressão parcial de oxigênio arterial com a fração inspirada de oxigênio (PaO2/FiO2) –, além de perda da complacência pulmonar (capacidade do órgão de expandir e retrair durante a respiração) e aumento na produção de colágeno (um dos principais componentes do tecido fibrótico) no órgão.
Já nos pacientes do grupo trombótico foi relatada uma melhora nos padrões respiratórios nos dias anteriores à morte, bem como alto nível de complacência pulmonar durante todo o período de hospitalização. “Em alguns casos, o médico relatou que chegaram perto de ter alta e, logo em seguida, faleceram”, conta Fabro.
Por outro lado, os doentes desse segundo grupo apresentavam elevação no nível de plaquetas (células sanguíneas envolvidas na formação de coágulos) e na formação de trombos. Além disso, observou-se que, no momento da admissão hospitalar, eles tinham níveis mais alto de dímero-D – proteína considerada um marcador de trombose – do que a média dos pacientes analisados.
“Esses achados reforçam que, apesar de a infecção ser a mesma, a resposta ao vírus varia bastante, mesmo entre os casos graves. E isso pode ter implicação clínica. Esses achados sugerem que os pacientes de cada grupo necessitam de tratamentos diferenciados. No artigo, mostramos que a evolução dos parâmetros respiratórios [PaO2/FiO2] e o nível de dímero-D na admissão, por exemplo, podem ajudar os médicos a diferenciar esses fenótipos”, diz Fabro.
Segundo o pesquisador, o estudo retrata como começa o processo de fibrose pulmonar que tem deixado sequelas em muitos sobreviventes da COVID-19. “A questão científica atual é como tratar e como impedir que esse processo evolua e se torne permanente. Existem algumas medicações antifibróticas, mas ainda não foram testadas no contexto pós-COVID”, afirma.