"Hoje perdemos um paciente por incapacidade da rede de oxigênio. A equipe lutou muito pelo paciente e fomos vencidos", escreveu uma médica do Hospital de Clínicas de São Sebastião, litoral paulista, em 10 de dezembro do ano passado. "Rede caiu, todos os pacientes estão no cilindro. Não tem mais cilindro, só chega amanhã. Quase perdemos um paciente", falou outro médico, em 12 de janeiro.Informações do UOL.
As mensagens trocadas em um grupo do aplicativo WhatsApp contradizem o discurso da Prefeitura de São Sebastião de que nada de anormal aconteceu na unidade hospitalar nos meses de dezembro e janeiro. Elas foram anexadas a uma ação conjunta da Defensoria Pública e do MP-SP (Ministério Público de São Paulo), a respeito de falhas no abastecimento de oxigênio na cidade de 90 mil habitantes.
A ação pede que a Justiça de São Paulo determine que a prefeitura deixe disponível oxigênio medicinal em quantidade suficiente para atender a demanda de 15 dias, e mais uma reserva de igual montante "para evitar risco de desabastecimento".
"As conversas entre os médicos do hospital e o chefe da UTI revelam uma tragédia consumada e uma provável tragédia anunciada", afirmam os órgãos. Segundo o defensor público Filovalter Moreira, "se o número de pacientes aumentar, as usinas de oxigênio podem não suportar".
A cidade tem 20 leitos de UTI para covid-19. Na quarta-feira (24), seis deles estavam ocupados. Desde o começo da pandemia, 74 pessoas morreram da doença em São Sebastião.
A Prefeitura de São Sebastião disse, em nota, que "conta com usinas de oxigênio próprias e que até o momento não houve qualquer tipo de interrupção do sistema". Afirmou ainda que vê com "estranheza" as mensagens, já que não foi registrada "oficialmente qualquer irregularidade à direção do hospital".
Perseguição política a funcionários
A Defensoria e o MP-SP relatam também casos de perseguição política. "Funcionários dos hospitais de São Sebastião, especialmente aqueles que exercem suas funções no combate à covid-19, estão sendo ameaçados de remoções ou desligamento, sabidamente porque, de algum modo, contribuíram para a coleta de informações relevantes para a propositura da presente ação", diz o documento.
Em 4 de fevereiro, após o ajuizamento da ação, o UOL esteve em São Sebastião e entrevistou o coordenador da UTI, Felix Plastino, indicado como porta-voz pela prefeitura. Na época, Plastino disse que "não houve registro de anormalidade que chamasse atenção".
Porém, as mensagens reveladas agora contrariam a afirmação. Em 13 de janeiro, o próprio Plastino escreveu para a equipe médica: "Nenhuma usina suporta nosso consumo, a menos que fosse uma usina mais sofisticada"
Os órgãos querem que a prefeitura informe todas remoções e demissões após o começo da ação na Justiça paulista.
Rede de oxigênio com problemas
Passava das 21h de 10 de dezembro quando a médica Luciana Correa relatou problemas na rede de oxigênio do Hospital de Clínicas de São Sebastião, no grupo de WhatsApp da equipe de saúde. Na primeira mensagem, marcou o diretor técnico do hospital e o coordenador da UTI, que também participavam do grupo.
Como já é sabido pela administração, a manutenção da rede de oxigênio da ala UTI e enfermaria não suporta número alto de pacientes! Infelizmente parece que a situação, desde o primeiro pico de covid-19, piorou! Hoje perdemos um paciente por incapacidade da rede de oxigênio, paciente precisando de [fração inspirada de oxigênio] de 100%, chegando menos que 80% no ventilador!".
O Hospital de Clínicas de São Sebastião é abastecido por usinas de oxigênio que operam no local. Elas são conectadas a uma rede, que leva o oxigênio direto para os pacientes. Além disso, há cilindros de oxigênio de reserva, caso haja problema nas usinas. Em casos mais graves de covid-19, um cilindro é deixado ao lado do leito, por precaução, diz a direção do hospital.
Segundo as mensagens no WhatsApp, no começo de dezembro, as usinas apresentaram falha, e passaram a fornecer oxigênio em baixa concentração. Normas da Anvisa determinam que o percentual mínimo deve ser de 92% —acima dos 80% citados pela médica. Em relação à reserva de cilindros, a profissional escreveu ainda que "não está suprindo a demanda".
O primeiro a responder à mensagem foi o chefe da UTI, Felix Plastino. Disse que havia sido alertado sobre a situação "desde cedo" e que estava buscando encontrar uma solução.
Outro profissional de saúde comentou: "Foda foi dar a notícia pra família. Filho pequeno. Complicado perder um paciente assim, ficamos o plantão todo do lado dele. Mas infelizmente não deu".
O paciente é Sidney Grillo, proprietário de uma rádio no litoral. No atestado de óbito, consta que a causa da morte foram complicações decorrentes da covid-19. A família não quis dar entrevista.
No dia seguinte, o coordenador da UTI respondeu novamente no WhatsApp: "Todos nós, que temos conhecimento prévio que a estrutura e o sistema podem oferecer esses riscos e continuamos inseridos neles, somos cúmplices!". Também reclamou dos profissionais, dizendo que a remoção do paciente para outra unidade deveria ter sido solicitada. "Depois do óbito, não adianta chorar o leite derramado."
Falta de cilindros de oxigênio
Em 12 de janeiro deste ano, a falha nas usinas de oxigênio se repetiu, segundo novos diálogos da equipe de saúde no WhatsApp. Dessa vez, também teria ocorrido falha nos cilindros.
"Rede caiu, todos os pacientes estão no cilindro, sem exceção e evoluindo mal da parte respiratória... O que fazer? Manutenção não tem mais cilindro, só chega amanhã! E agora?", questionou o médico Rafael Arouca, por volta de 22h.
"Não vou receber paciente nessa condição", acrescentou. "Se morrer, vou chamar a família para dizer o quê?". O médico foi procurado pela reportagem, mas não retornou.
"Só temos um cilindro para cada paciente... E alguns pequenos... Nos pacientes com [fração inspirada de oxigênio] de 100% dura 4 horas... E aí? Se acabar esses, acabou tudo. Não tem mais nenhum", prosseguiu Arouca, marcando na mensagem o diretor técnico do hospital e o coordenador da UTI.
Leonel Szterling, o diretor, escreveu: "O técnico de manutenção foi para Boiçucanga [onde fica o único outro hospital de São Sebastião] que teve problema lá também". O hospital de Boiçucanga também opera com usinas de oxigênio do mesmo fornecedor.
Por volta de 23h, o médico Arouca voltou a escrever: "Conseguimos estabilizar com os cilindros... Ganhamos tempo para esperar mais até amanhã. Mas o problema vai continuar... Quase perdemos o paciente Francisco... Algo tem que ser feito para não correr esse risco"
Na manhã seguinte, outra médica relatou o mesmo problema: "Os cilindros que temos estão próximos do término e não temos mais oxigênio! Eu não assinarei DO [declaração de óbito] por problema estrutural".
Perda de cargos
No final de janeiro, a Defensoria e o MP-SP apresentaram áudios de uma conversa entre o responsável pela manutenção técnica da usina de oxigênio com o fisioterapeuta Thiago Richiter, que atuava na UTI respiratória do Hospital de Clínicas.
"Acabei de sair da UTI respiratória, negócio é louco meu irmão, aqui tá 12 ventiladores, você não sabe pra onde você corre, é uma loucura, pega torpedo [cilindro], faz o diabo, é loucura, é loucura, beleza", diz Richiter em um dos áudios.
O responsável pela manutenção é Wagner Aniceto de Souza. Em 2019, o Conselho de Saúde de São Sebastião criticou sua contratação, afirmando que não houve processo seletivo e que a escolha foi "política". Wagner é irmão do Secretário de Serviços Públicos da cidade.
O UOL foi até a casa de Wagner e telefonou, mas ele não quis falar.
Em janeiro, Richter foi removido da UTI respiratória — procurado, preferiu não se manifestar. Em fevereiro, foi a vez da médica Luciana Correa, que também relatou problemas no fornecimento de oxigênio.
"Tais condutas da administração hospitalar denotam quão perniciosa é a relação profissional no âmbito dos hospitais de São Sebastião, com manifesta perseguição contra aqueles que trazem, para além dos interiores dos hospitais, informações de interesse público", lê-se no documento.