"Uma análise mundial parece indicar que os principais fatores para domar a catástrofe [da pandemia da Covid-19] tem sido: um governo efetivo agindo para o bem estar da sua população, combinado com um espírito e uma mentalidade coletiva de cooperação. Nós todos estamos nisso juntos para o bem comum”.
A afirmação é do filósofo, linguista, sociólogo, cientista cognitivo e ativista político americano Noam Chomsky que tratou sobre os desafios econômicos globais pós-pandemia da Covid-19 durante o Fórum Social Mundial Virtual 2021 realizado nesta segunda-feira, dia 25, pela Carta Maior e Fórum 21.
Chomsky mora no estado americano do Arizona com sua esposa Valeria Wasserman. Ele contou que se sentiu privilegiado em ter conseguido máscaras de alta qualidade graças à generosidade de um amigo que mora em Taiwan. “Enquanto isso o Arizona acabou de ganhar o campeonato mundial de infecção per capita pela Covid-19. Na manchete principal do New York Times lê-se o seguinte: ‘A nova angústia da pandemia: hospitais não tem mais estoques de vacina’. A história prossegue mostrando que os funcionários de saúde pública dos Estados Unidos estão frustrados porque as doses disponíveis não estão sendo usadas enquanto o coronavírus mata milhares de pessoas por dia”, relatou Chomsky.
A imprensa americana acrescenta ainda que os hospitais não tem leitos disponíveis e as pessoas estão morrendo nos corredores. “O quadro é muito parecido em toda parte, isso no país mais rico do mundo, que teria vantagens incomparáveis”, lembrou Chomsky.
Na mesma primeira página do jornal New York Times, o filósofo leu uma outra história: “Um ano depois do lockdown, hoje Wuhan está assim”, seguido pela descrição das pessoas festejando. “Nós não podemos ser muito dóceis em retirar lições sobre o que aconteceu em todo o mundo nesse terrível ano. Mas não seria muito inteligente a gente ignorar esses registros históricos. O meu estado natal, a Pennsylvania, tem mais ou menos a mesma população de Cuba. Mas tem 100 vezes mais óbitos causados pela Covid-19. São 20 mil contra 200 mortes em Cuba. As mortes por Covid-19 na cidade de São Paulo estão em uma taxa comparável 100 vezes mais alta que Cuba”, completou Chomsky.
O filósofo rebateu o argumento que atribui o sucesso da China, em contraste a catástrofe dos Estados Unidos, ao controle autoritário rígido sobre os cidadãos pelo governo chinês. “A conclusão não é muito persuasiva. Taiwan é tão livre e democrático como os Estados Unidos. A população de Taiwan de 24 milhões de pessoas e registrou apenas sete mortes por Covid-19. Além do mais os observadores sobre a China relatam que a aceitação popular das medidas de restrição que varreu a doença do país foi amplamente voluntária e de apoio”, destacou Chomsky.
“Neoliberalismo contribui para intensificar crise da Covid-19”
O filósofo Noam Chomsky analisou durante o Fórum Social Mundial Virtual 2021 os países com pior desempenho no combate à pandemia da Covid-19. Ele colocou o Brasil de lado "porque é muito deprimente discutir o caso agora” e relacionou o resultado no enfrentamento à doença com a economia neoliberal desses países.
“O caso mais instrutivo seria os Estados Unidos e o seu aliado mais próximo, os britânicos. Ambos com registros horríveis que são destacados como contraste ao fantástico desenvolvimento econômico e privilégio que eles usufruem. Eles são os lares dos programas neoliberais que varreram o mundo nos últimos 40 anos dirigidos por Ronald Reagan e Margaret Thatcher, e depois pelos seus sucessores”, explicou Chomsky.
“Essas doutrinas neoliberais contribuíram poderosamente para criar e depois intensificar a crise da Covid-19. Os beneficiários poderosos e muito ricos dos programas neoliberais agora estão trabalhando duramente para garantir que vão conseguir moldar a sociedade pós-pandemia. As doutrinas e consequências devem ser examinas de perto”, alertou o cientista no Fórum Social Mundial Virtual 2021.
O filósofo apontou que uma das investidas do neoliberalismo no atual cenário tem sido desmantelar a sociedade civil organizada e diminuir a preocupação do governo quanto ao bem estar da população. “Para ser mais preciso, sobre a doutrina neoliberal alguns são jogados ao mercado para sobreviver de alguma maneira. Outros tem o direito de serem afagados pelo estado. O que significa que os cidadãos serão desafortunados. Nunca devemos esquecer o adágio de [Honoré de] Balzac retirado da sabedoria tradicional. Balzac diz: 'as leis são como teias de aranha, onde as grandes moscas conseguem passar, mas só as pequenas moscas é que são presas na teia'. Os programas neoliberais foram construídos para garantir que esses princípios prevaleceriam com subsídios massivos e socorros dados às grandes moscas”, falou Chomsky.
O cientista colocou essa análise como essencial para entender o caminho do mundo pós-pandemia da Covid-19: “Não existe o menor conflito entre pedido de liberdade e medidas duríssimas de repressão e controle de outro lado. Além do mais, existem forças poderosas que trabalham duramente agora mesmo para garantir que o mundo pós-pandêmico vai reter as principais armas da guerra de classes incorporadas pela doutrina neoliberal. Por essa razão examinar os dogmas básicos do neoliberalismo e suas consequências é muito importante”.
“As ideias essenciais foram capturadas pelo discurso de posse Reagan. Ele disse: ‘o governo é o problema, não é a solução’. Isso não significa que as decisões a nível nacional devam desaparecer. Pelo contrário, elas são deslocadas para as mãos dos mestres, senhores, donos da humanidade. As grandes empresas e as instituições financeiras que explodiram em escala durante os anos neoliberais. […] Eles vão seguir a máxima deles: tudo para nós mesmos e nada para mais ninguém. Isso foi dito em 1776 e agora estamos vendo hoje esse tipo de mentalidade”.
Chomsky citou como consequência dessa lógica econômica um estudo feito pela consultoria americana Rand Corporation que estima que a transferência de riqueza de 90% da população de mais baixa renda para os muito ricos, ou seja, a fração de 1% da população mais rica, teria sido de 47 trilhões de dólares. “Isso parece um troco, o que seria uma séria subestimativa. Isso não levou em conta o fato de que Reagan abriu as portas para as manipulações financeiras que anteriormente eram proibidas por lei como a criação de paraísos fiscais que vai acrescentar outras dezenas de trilhões ao roubo no atacado contra os trabalhadores e a classe média. Os resultados estão aos nossos olhos, todas as vezes que a marreta foi usada”, disse o cientista no Fórum Social Mundial.
"Não há nenhum exagero em ligar o botão pânico agora"
Noam Chomsky faz um alerta antenado com estudos científicos que apontam novas pandemias e efeitos climáticos catastróficos no mundo: "A pandemia será contida. A um custo terrível. E a um custo desnecessário como podemos ver a partir das sociedades ricas ou pobres que conseguira lidar com a pandemia efetivamente. A pandemia será superada e se a história pode nos orientar. Em breve ela terá sido até mesmo esquecida".
"Pense um pouco sobre a chamada gripe espanhola. Um século atrás. O número de mortes foi colossal. Se estima que cerca de 50 milhões de pessoas morreram. Considerando o tamanho da população isso seria o equivalente hoje de 300 milhões de pessoas mortas. Seria um desastre inimaginável. Mas em breve a gripe espanhola foi esquecida. Eu nasci poucos anos depois que ela aconteceu. E nunca ouvi falar da gripe espanhola quando eu era criança. Só aprendi através dos livros de história. Se revivermos aquela experiência estaríamos em grande dificuldade. Outra pandemia de coronavírus muito provavelmente virão. E talvez poderão ser até mesmo mais graves do que esta. Por causa da destruição do habitat natural e do aquecimento global", completou Chomsky.
"Nos últimos anos os cientistas nos disseram claramente o que fazer, mas não foi feito. As grandes instituições e empresas super ricas, farmacêuticas não estavam interessadas graças a lógica capitalista. Não seria lucrativo preparar-se para um desastre que ocorreria daqui a alguns anos. O governo dos Estados Unidos e alguns outros possuem laboratórios fantásticos que de fato proveram descobertas importantes para medicamentos e vacinas que depois são colocados no mercado por lucro. O desastre poderia ter sido pior pela incompetência e alguns casos pela malevolência das lideranças políticas. Nós estamos ouvindo os mesmos apelos de cientistas hoje", lembrou Chomsky.
"Os esforços precisam ser acelerados e logo. Se não o jogo acabou. Cientistas respeitados nos dizem em termos nada incertos que temos que ligar o botão pânico agora e eles não estão exagerando. Não há nenhum exagero em ligar o botão pânico agora", finalizou Chomsky.
== Fórum Social Mundial
Noam Chomsky é um veterano no Fórum Social Mundial. A sua primeira participação no evento se deu 20 anos atrás em 2001. “Foram dias de grande exuberância, vitalidade, empolgação, expectativa e uma interação entusiástica dos participantes que variavam desde a via campesina até movimentos de centros urbanos todos unidos na crença de que um outro mundo é possível. E comprometidos em criar esse outro mundo firmemente rejeitavam a famosa ideia da Margaret Thatcher, a ex-primeira ministra da Inglaterra, de que não existe nenhuma alternativa ao regime neoliberal que ela e o Ronald Reagan estavam buscando impor ao mundo. O slogan do Fórum Social Mundial era o oposto a Margaret Thatcher: ‘existe uma alternativa e nós vamos criá-la”, contou Chomsky.
O filósofo lembrou que a empolgação com o Fórum Social Mundial se deu em um momento quando o Brasil estava equilibrado para entrar na chamada “década dourada”, frase usada pelo Banco Mundial em uma avaliação retrospectiva dos anos do governo Lula. “O Brasil talvez tenha se tornado o país mais bem respeitado no mundo e uma voz eloquente na defesa do Sul do globo sob a liderança do presidente Lula e do seu ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim. Esse não é o clima hoje”, completou o ativista político na atual edição do Fórum Social Mundial.
“As adaptações ou acomodações do governo Lula com relação às demandas do capital privado internacional, não importa o que a gente ache disso, não foi suficiente para aplacar aqueles que o Adam Smith chamava de ‘senhores ou donos da humanidade’. A reação veio logo e não apenas no Brasil. Não há necessidade de analisarmos como o Brasil está sendo visto agora pelo mundo. Isso talvez pudesse ser simbolizado pela entrega de uma ajuda humanitária de oxigênio da Venezuela para aliviar a catástrofe que está ocorrendo em Manaus”.