Maria Fernanda Ziegler | Agência FAPESP – Um dos grandes alertas que soaram com a pandemia de COVID-19 foi a necessidade urgente de ampliar no Brasil o monitoramento de zoonoses, doenças infecciosas transmitidas entre animais e pessoas. Sabe-se que o desmatamento progressivo das florestas favorece o que os cientistas chamam de spillover, ou seja, o transbordamento de patógenos de espécies silvestres para os humanos. Acredita-se que desse modo tenham emergido enfermidades como Aids, ebola, doença de Lyme, malária, raiva e, muito provavelmente, a COVID-19.
A necessidade de maior monitoramento e de outras estratégias para evitar o surgimento de novas pandemias foram os temas debatidos no quarto e último webinário da série “Saúde e Ambiente na Amazônia no contexto da COVID-19”, realizado no dia 26 de agosto.
A proposta de debate partiu de pesquisadores que integram o projeto "Depois das Hidrelétricas: Processos sociais e ambientais que ocorrem depois da construção de Belo Monte, Jirau e Santo Antônio na Amazônia Brasileira", apoiado pela FAPESP no âmbito do programa São Paulo Excellence Chair (SPEC).
“A pergunta que fica é por que até agora nenhuma pandemia teve início no Brasil. As áreas tropicais com alta diversidade de mamíferos são vistas como pontos de risco para a emergência de zoonoses e doenças infecciosas. Mas a verdade é que ainda estamos muito mais importando agentes infecciosos do que exportando. No entanto, a recente aceleração do desmatamento, sobretudo na Amazônia, no Pantanal e no Cerrado, nos permite imaginar o que pode vir pela frente”, disse Márcia Chame, pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz-RJ).
Chame é coordenadora do Centro de Informação em Saúde Silvestre (CISS) e afirma que o atual cenário de devastação ambiental aumenta ainda mais a necessidade de monitorar animais considerados sentinelas de zoonoses, como é o caso dos macacos e da febre amarela.
“No Brasil ainda não temos monitoramento suficiente nem bons modelos de predição que nos permitam identificar com precisão onde estão os focos dessas emergências. É um trabalho extremamente necessário, mas difícil de ser realizado, pois exige o envolvimento de uma equipe multidisciplinar de pesquisadores, dos governos e também da população”, afirmou a pesquisadora.
O grupo da Fiocruz desenvolveu o aplicativo Sistema de Informação em Saúde Silvestre (SISS-Geo) que permitiu, durante o surto de febre amarela de 2018, monitorar e prever futuros focos da doença. Só na região Sudeste do país foram quase 3 mil mortes causadas pelo vírus naquele ano.
“Nosso trabalho de monitoramento permitiu compreender os caminhos da doença. Transpusemos esses corredores para o Paraná e para Santa Catarina e, com o aplicativo usado pelos municípios [acompanhando a morte dos macacos], foi possível classificar as áreas conforme o grau de risco. Isso permitiu planejar a vacinação da população, antecipando nas regiões prioritárias e estruturando equipes para as áreas rurais e mais isoladas”, comentou.
Relação direta
Marcus Barros, ex-presidente do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), ressaltou a relação entre o desmatamento e os sucessivos surtos ou o surgimento de novas doenças na região amazônica.
“Hoje, acompanho alarmado as notícias sobre o desmonte das políticas ambientais na Amazônia e suas enormes consequências para o meio ambiente e a saúde das populações humanas. Sabemos que o desmatamento é o fio condutor para a propagação de doenças e que o meio ambiente e a saúde estão muito ligados”, disse.
De acordo com Barros, não por acaso, houve historicamente uma relação entre os surtos de malária e o avanço do garimpo de ouro ou de grandes projetos de infraestrutura na Amazônia. “Outro caso interessante é a doença de Chagas, que antes não ocorria na Amazônia. Porém, ela apareceu nas cabeceiras dos rios entre os produtores de açaí e araçá”, contou.
Barros também notou a ligação entre desmatamento e casos de leishmaniose ainda nas décadas de 1970 e 1980, quando era professor. “Quanto mais se desmatava, mais surgiam novos casos da doença. Tivemos essa constatação com a ocupação do bairro São José Operário [no leste de Manaus], na década de 1980. Em questão de dias subiram de 30 para 200 os casos de leishmaniose tegumentar, formando uma relação direta entre a doença, o desmatamento e a ocupação desordenada do espaço regional”, afirmou.
Ao longo de 50 anos atuando como médico e professor de infectologia, ele também acompanhou o surgimento de novas doenças na região. “É o caso da febre hemorrágica de Altamira, a febre negra de Lázaro. Também não existia aqui na região amazônica a leishmaniose visceral, nem a doença de Chagas.”
O professor defende que a política de saúde para a Amazônia deve ser diferente do restante do país devido às características da região, especialmente no que se refere ao clima, à densidade demográfica e à grande diversidade étnica.
“A COVID-19 chegou à Amazônia num contexto de estímulo ao desmatamento pelo atual governo. Em princípio, os poderes locais minimizaram os riscos. Os necessários cuidados preventivos foram negligenciados. Nem sequer foram levadas em conta as características regionais, como o fato de os povos indígenas apresentarem baixa resistência a doenças virais, fato amplamente conhecido. Não houve um planejamento, nem melhora da infraestrutura médica. Ao contrário, foi criada pelo governo central uma estratégia totalmente anticientífica, como a distribuição de medicamentos sem qualquer eficácia contra a COVID-19”, opinou.
A professora da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP) e coordenadora do Centro Brasil-Reino Unido para Descoberta, Diagnóstico, Genômica e Epidemiologia de Arbovírus (CADDE), Ester Sabino, também considera urgente criar estratégias para detectar o risco de epidemias antes que elas ocorram, algo possível a partir do monitoramento de vírus, animais hospedeiros e reservatórios.
“Isso é bonito de desenhar, mas difícil de fazer. Até porque as tecnologias capazes de detectar esses vírus são muito caras e difíceis de serem oferecidas em larga escala para a população. Fora isso, há a dificuldade de importar materiais para o estudo dos patógenos. Um primer para PCR [método que permite identificar patógenos com base em seu material genético], por exemplo, demora mais de 30 dias para chegar até aqui. Toda essa tecnologia de pesquisa precisa estar disponível para os cientistas”, ressaltou.
Para a pesquisadora, a pandemia da COVID-19 mostrou a importância do monitoramento de patógenos. “É interessante observar como a China detectou o primeiro caso de COVID-19. Porque é um exemplo que nos leva a pensar se estaríamos preparados caso essa pneumonia fosse detectada em um mercado em São Paulo, por exemplo. Se o agente etiológico de uma pneumonia não for monitorado constantemente, fica parecendo uma doença viral como outra qualquer e demora até que se perceba a correlação de casos e que se trata de uma epidemia.”
Sabino destacou que o fato de o Brasil não fazer o diagnóstico sistemático da infecção resulta em uma enorme lacuna de tempo entre a circulação de novos vírus na população e os primeiros casos detectados de doenças.
“Um estudo recente, a partir do sequenciamento do vírus zika, nos permitiu inferir que ele entrou no país quase 18 meses antes do primeiro caso ser notificado. Isso mostra a necessidade de diminuir os custos dos testes para ampliar nossa capacidade de detecção. Afinal, novos vírus podem entrar no país e podemos continuar achando que é dengue, como aconteceu na epidemia de zika”, disse.
De acordo com Sabino, um dos casos mais marcantes sobre essa lacuna entre circulação e detecção de um patógeno é o HIV. Estudos mostram que esse vírus está em circulação desde os anos 1920, mas apenas a partir da década de 1980 a Aids passou a ser diagnosticada.
“A epidemia de Aids também nos ensina sobre as consequências do negacionismo. Nos anos 2000, a África do Sul tinha um presidente que a negava e até hoje, 20 anos depois, a principal causa de morte naquele país é o HIV e não a COVID-19. Esse caso é impressionante para confirmar que medidas não tomadas podem impactar no longo prazo para a evolução de uma epidemia”, afirmou.
Sabino realizou uma série de estudos sobre a disseminação da COVID-9 no país e destaca que a evolução da doença se deu de forma muito diferente entre Estados e regiões do Brasil. Um caso atípico foi Manaus, onde houve uma explosão de casos.
A equipe de pesquisadores realizou um estudo com dados de doadores de sangue que mostrou alta prevalência do novo coronavírus na população da capital amazonense, assim como a rápida baixa de anticorpos para COVID-19 ao longo do tempo.
“Nosso estudo mostrou uma taxa de ataque de pelo menos 70% da população de doadores e uma rápida perda da imunidade, pelo menos daquela relacionada com os anticorpos contra o vírus. Isso demonstrou, no meio do ano passado, que se ocorresse uma segunda onda [o que de fato aconteceu] aquela população estaria com uma perda importante de imunidade depois do primeiro ataque. Isso pode ser observado em vários lugares do mundo. Mesmo populações com altas taxas de ataque sofreram as consequências de uma segunda onda e também a ocorrência de novas variantes.”
A série de seminários “Saúde e Ambiente na Amazônia no contexto da COVID-19” é uma iniciativa que reúne a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a USP, a Universidade Federal do Pará (UFPA), o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), a Universidade Federal de Rondônia (Unir), a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e a Michigan State University (MSU), dos Estados Unidos.