Um esquadrão da morte dentro da polícia do Quênia está usando o Facebook para encontrar e matar jovens que acreditam ser membros de gangues. É o que disseram moradores de uma região pobre e densamente populada da capital, Nairóbi, numa reunião pública.
"Perdi dois maridos num só ano", disse uma jovem, aos prantos, com um bebê no colo, durante uma reunião do conjunto residencial de Kayole no mês passado.
Outros vieram a público para contar histórias parecidas sobre parentes jovens que foram mortos.
Promotores, oficiais de polícia e ativistas de direitos humanos que participaram da reunião ouviram deles que esses jovens, suspeitos de serem criminosos, eram localizados em grupos do Facebook por "caçadores de gângsteres".
"Eles os acham no Facebook e depois de uma semana ou mês, os matam e postam fotos dos corpos no Facebook", disse Wilfred Olal, da organização Dandora Community Justice Centre.
As fotos, que às vezes mostram closes de cabeças estouradas por balas ou corpos eviscerados, em geral aparecem com um aviso de que o mesmo destino aguarda outros criminosos. Algumas das imagens são borradas pelo Facebook.
Os moradores de Kayole dizem que há vários grupos de Facebook, alguns públicos e outros fechados, que são atualizados com fotos grotescas quase que diariamente.
Lágrimas de policiais
Duncan Omanga, pesquisador da Moi University, no Quênia, que há três anos monitora páginas do tipo no Facebook, diz que os policiais suspeitos usam perfis anônimos para espionar seus alvos.
"A primeira conta não oficial desses policiais no Facebook surgiu com o nome em suaíli para Hessy de Kayole. Hessy virou uma espécie de caçador de criminosos sombrio, um lobo solitário."
Sua fama foi se espalhando pelas redes sociais, e começaram a surgir outras contas de Facebook com nomes de caçadores de gangues de outras áreas perigosas da cidade.
De acordo com Omanga, seria "uma estratégia proposital para dar a impressão da onipresença policial e de vigilância constante do Estado".
Em novembro passado, o ex-chefe de polícia Joseph Boinnet negou que a pessoa por trás da conta no Facebook seria um policial, dizendo que seria "um civil com grande interesse por questões de segurança".
O diretor de investigações criminais da polícia, George Kinoti, que chorou ao ouvir os testemunhos de Kayole, disse que não tinha conhecimento de agentes como o tal Hessy.
"Na minha gestão ninguém vai jogar para debaixo do tapete um policial que mate."
Mas seus comentários foram abafados pelo burburinho. Uma pessoa gritou: "Eles estão no Facebook, até no Twitter".
A reunião no condomínio do Kayole foi organizada por um promotor após ativistas e moradores dizerem que policiais não estavam levando suas denúncias a sério.
'Marcando um encontro com Deus'
A pesquisa de Omanga revelou que uma média de seis supostos gângsteres são perfilados por mês em diverso grupos, que divulgam seus supostos crimes, os lugares onde atuam e o tipo de arma que usam.
Nesse mesmo período de tempo, entre 10 e 12 mortes por policiais foram postadas num grupo fechado chamado Nairóbi Livre de Crime.
Ela tem mais de 300 mil membros. O slogan é "perdoar um terrorista cabe a Deus, mas marcar o encontro com Deus é nossa responsabilidade" e o logo, um homem fardado não identificado.
Omanga diz que as imagens macabras compartilhadas no grupo são publicadas para chocar e mostrar poder. Às vezes uma foto antiga da vítima é colocada ao lado de uma imagem de seu corpo morto.
Os membros do grupo parecem gostar do conteúdo, a julgar pelos likes e emojis positivos.
Alguns também compartilham suas experiências pessoais como vítimas de crimes e clamam para que a polícia elimine outros supostos membros de gangues.
Para terem acesso a essas páginas, novos usuários têm de responder a três perguntas, incluindo se eles apoiam os esforços da polícia para combater o crime.
Criminosos também ficam de olho nessas páginas para ver se viraram alvos.
Depois de serem identificados, vários jovens se escondem ou buscam proteção com organizações de direitos humanos.
Omanga diz que a polícia também aprendeu a identificar membros de gangues no Facebook, pois alguns deles usam suas contas pessoais para se vangloriar e provocar agentes.
'Gangue de Gaza aniquilada'
Mas isso parou depois que o líder de uma gangue, Mwani Sparta, conhecido por postar imagens de sua vida de luxos, publicou uma foto sua em 2017 com uma grande arma na mão, ao lado de amigos.
Ele percebeu seu erro e tirou a postagem do ar, só que ela já havia sido compartilhada e a polícia teve uma visão privilegiada dos membros da Gangue de Gaza.
Todos viraram alvo de assassinatos extrajudiciais. Cada vez que um membro da gangue morria, a foto do grupo era editada para mostrar um rosto com um traço em cima, diz Omanga.
Outro membro da gangue, cuja foto também foi compartilhada, ficou tão aterrorizado que disse no Facebook que tinha desistido da vida do crime e virado evangélico. Logo depois, foi preso.
Mas não são só gangues criminosas que são alvo desses grupos de Facebook. Ativistas de direitos humanos dizem ter sido pressionados após falar publicamente sobre essas mortes.
"Nós também fomos alvo dessas páginas, postaram fotos dos nossos escritórios. Denunciamos à polícia, mas não aconteceu nada", diz Olal, acrescentando que eles também se sentem assediados pela polícia, já que ativistas muitas vezes são detidos, sem ser indiciados.
"Queremos saber se essas pessoas, como Hessy, são policiais e, se são, se eles têm direito de matar pessoas e postar fotos dos corpos no Facebook."
Conteúdo gráfico 'banido'
Um grupo chamado Uhai Wetu foi formado para que ativistas de direitos humanos de diferentes subúrbios possam apoiar uns aos outros e articular uma resposta conjunta a essas ameaças.
Eles pediram diversas vezes ao Facebook para que retirasse o conteúdo ofensivo do ar - sem sucesso.
Mas um porta-voz do Facebook disse à BBC que "reconhecemos que temos a responsabilidade de lutar contra abusos na nossa plataforma e estamos trabalhando duro com parceiros locais, incluindo organizações da sociedade civil, para entender melhor as questões locais e lidar com elas de forma mais eficiente".
O porta-voz disse também que o Facebook tem regras claras contra a postagem de conteúdo gráfico e violento e "quando somos alertados sobre ele, o retiramos".
"Nossa investigação sobre o assunto é constante e agradecemos à BBC por trazer o problema à nossa atenção", acrescentou a plataforma.
No entanto, as mortes extrajudiciais tiveram pouca repercussão fora das comunidades afetadas.
Omanga diz que muitos quenianos, cansados de um sistema de justiça lento e corrupto, veem com bons olhos o policial que faz Justiça com as próprias mãos.
Um artigo na imprensa do Quênia publicado há alguns anos sobre quatro "superpoliciais" de Nairóbi, dizia que eles tinham adquirido uma "licença para matar".
"O autor dizia que eles eram da mesma laia do lendário Patrick Shaw", comenta ele, em referência a um colono britânico que virou policial voluntário após a independência do Quênia em 1963 e era elogiado por fazer "justiça na hora".
Para Olal, que reconhece que crimes são um grande problema das áreas pobres de Nairóbi, o que é preciso é que a lei seja cumprida de forma igual para todos.
"Se ricos suspeitos de sonegar impostos são levados a julgamento, também queremos que nossos jovens possam ser ouvidos", disse ele.