Em três meses, jovem deixa de vender frutas e passa a reger orquestra

Milhares de jovens deixaram a Venezuela nos últimos anos para fugir da crise e ir atrás de seus sonhos em outro lugar. A história de Glass Marcano, entretanto, é mais inesperada.

Glass | Reprodução
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Glass Marcano, 24 anos, pediu dinheiro emprestado, deixou país na pandemia e chegou à semifinal de concurso para maestrina. Milhares de jovens deixaram a Venezuela nos últimos anos para fugir da crise e ir atrás de seus sonhos em outro lugar. A história de Glass Marcano, entretanto, é mais inesperada.

Há três meses, a jovem de 24 anos vendia frutas com a mãe em Yaracuy, no centro-oeste da Venezuela. Ela deixou o país pela primeira vez de uma forma bizarra e agora tira selfies com a Torre Eiffel ao fundo.

E também coleciona elogios em francês. "É uma jovem extremamente talentosa, trabalhadora e inteligente que terá uma grande carreira", prevê em conversa com a BBC News Mundo Romain Fievet, da orquestra Paris-Mozart, que em conjunto com a Filarmónica da capital francesa organizou o concurso Maestra, para profissionais mulheres. Esse foi o início de alguns meses agitados para a diretora venezuelana.

Glass Marcano durante concurso em setembro (Foto: Masha Mosconi)

Caracas e além

Marcano, aluna do El Sistema, famoso modelo de formação de jovens músicos criado na década de 1970 na Venezuela, morou em Caracas, onde combinou os estudos de direito com a música. "Qualquer oportunidade de dirigir uma orquestra ou oficina eu aproveitava. O ano passado foi o mais ativo porque parei de dirigir a orquestra que tinha em Caracas e fiz um plano pelo interior do país para dirigir várias orquestras", conta ela à BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC) por telefone, de Paris.

Em março de 2019, um desejo latente e o Google abriram uma nova janela. 'Qualquer oportunidade de dirigir uma orquestra ou oficina eu aproveitava', lembra maestra venezuelana.

A venezuelana se agarrava às primeiras oportunidades que envolviam orquestras(Foto: Marsha Mosconi)

"Eu estava pensando que era hora de participar de um concurso de regência orquestral. Ligo o computador e busco 'concurso de regência orquestral' e começo a descer, descer e descer a tela e acho o La Maestrina. Comecei a entender do que se tratava. Era apenas para mulheres, e isso chamou demais minha atenção."

Parecia perfeito, mas surgiu um problema de três dígitos. "Vejo que a taxa (o custo da inscrição) é de 150 euros (R$ 950) e fico desanimada, como todo venezuelano que tem uma ilusão e vê o dinheiro escapando das mãos. E aí você diz: não dá, talvez em outro momento".

"Cento e cinquenta euros é uma grande fortuna, mas se o concurso dissesse 50, também seria uma grande fortuna. Já tinha me esquecido disso, mas estava sempre latente. Me imaginava ganhando o concurso, competindo, ganhando."

Meses depois, entre julho e agosto de 2019, ela pediu ajuda. "Decidi procurar maneiras com amigos e familiares de fora do país para receber o dinheiro e poder participar, mas faço isso apenas três semanas antes do fim do prazo. Para pedir dinheiro emprestado a um amigo, você deve falar com ele pelo menos com um mês ou dois meses antes para que a pessoa se planeje e possa reservar os 150 ".

O dinheiro chegou, ela fez a inscrição e no final de outubro de 2019 confirmaram que ela havia sido selecionada para o concurso, que aconteceria em março de 2020.

Marcano pediu ajuda para arrecadar dinheiro com amigos e familiares. "Nunca pensei que fosse participar dessa brincadeira", disse. Romain Fievet, da orquestra Paris-Mozart: "Recebemos 220 candidaturas e o júri escolheu por unanimidade a Glass Marcano. Artisticamente, os seus vídeos revelaram um carisma autêntico, muita energia, um verdadeiro conhecimento das partituras e, obviamente, ritmo corporal."

"Assim que soube que havia sido selecionada, ela nos procurou para contar sobre suas dificuldades em chegar a Paris e cobrir os custos da participação."

A pandemia

Em março, porém, não houve Paris, mas coronavírus.

"Tudo parou. A mensagem que chegou para mim dizia que foi adiado para setembro. O problema surgiu em maio, quando outras partes do mundo começaram a se abrir e a pandemia estava se intensificando na Venezuela" "Vou para Yaracuy, porque a minha mãe me disse que abriu uma mercearia e que posso trabalhar lá, juntar (dinheiro) e comprar roupas para o concurso. Pareceu-me uma excelente ideia, porque precisava de algumas roupas para vir a Paris".

Mas os aeroportos da Venezuela continuaram fechados e ela teve medo de tentar ir pela estrada até Bogotá — trajeto em que temia se infectar.

A viagem

"Saiu a notícia de que haveria um voo humanitário no dia 14 de setembro e foi aí que começou toda a preparação para me levar naquele avião a Madri."

Durante a pandemia e com as fronteiras fechadas, a embaixada da Espanha em Caracas fretou voos para o transporte de passageiros retidos na Venezuela, com preferência para aqueles com passaporte espanhol. Não era o caso de Marcano.

"Naquela altura ainda não sabia como conseguir um lugar. Tudo que sei é que muitas pessoas se mobilizaram para me dar um lugar." Como muitos, Marcano também teve contratempos por conta da pandemia de coronavírus

Fievet confirma.

"A orquestra Paris Mozart e a Filarmônica a apoiaram entrando em contato com a embaixada francesa em Caracas para conseguir um visto e uma vaga em um voo humanitário. Ela estava determinada, mostrou coragem e determinação, e isso é o que é preciso para ser uma diretora."

Ao chegar ao aeroporto, um oficial francês disse a Marcano: "Filha, quem é você? Nem com o presidente recebemos tantos e-mails para colocá-lo no avião quanto recebemos com você."

Quando saiu, ela mal se deu conta de que era seu primeiro voo, a primeira vez que saía do país: o foco dela estava no concurso.

A competição

Marcano chegou poucas horas após o início da competição. E subiu ao pódio. "Em muitos momentos senti que não estava na realidade. Foi uma experiência nova para mim, fiquei impressionada com tudo. Senti que estava em outro planeta. Não é fácil, ainda mais se tiver que fazer em um idioma diferente do seu". 'Em muitos momentos senti que não estava na realidade', lembra Marcano sobre participação em concurso. Ela usou o inglês, "mas eles não me entenderam", ri.

Não se intimidou com as rivais — que tiveram uma formação de excelência e oportunidades de viajar pelo mundo desde muito novas. "Pessoas do júri me disseram que ficaram surpresas por eu ter chegado à semifinal com um nível tão alto na competição. Ela não venceu, mas ganhou um prêmio especial.

Uma profissão de homens

A regência não é um mundo acessível para as mulheres, que aos poucos procuram romper essa barreira com a batuta. Marcano, no entanto, não tinha exatamente esta pauta em mente ao construir seu caminho.

"Nunca passou pela minha cabeça querer representar as mulheres. Queria ser maestra para enlouquecer no palco. As mulheres na música são mais inclinadas a ser instrumentistas de orquestra do que maestras, mas quem quiser ser maestra deve trabalhar para isso. Já que eu queria ser uma, isso nunca saiu da minha cabeça "

E Paris...

Embora a sua ideia inicial fosse voltar à Venezuela, terminar os estudos e depois partir, agora que já está em Paris vai continuar estudando na cidade que conheceu na televisão e na qual ainda não acredita que vive.

Apesar da situação econômica venezuelana, na Europa os músicos reconhecem El Sistema, programa que impulsionou grandes músicos venezuelanos como Gustavo Dudamel.

"Não sei por quanto tempo ficarei aqui, mas estou pronta para o que está por vir."

Comparando com Caracas e Yaracuy, ela se surpreende com a organização e a operação do transporte urbano. E, claro, com o supermercado com preços fixos e ao alcance de quase todos.

"Na Venezuela, vivemos em constante estresse porque os preços sobem todos os dias, mas o seu salário não, e aí você começa com o estresse de ter que trabalhar mais, em busca de uma forma de sobreviver".

Agora ela está recebendo ajuda, mas precisa começar a trabalhar e ganhar dinheiro. "A ideia é que o seu problema não é ter que ir para a fila do pão, que é o que temos na Venezuela. Por aqui estamos melhor, mas tenho uma família para ajudar." "Se for preciso trabalhar em outra coisa que não seja música e me ajudar financeiramente e minha família, claro que faço. Fiz na Venezuela e posso fazer aqui eu também".

O capricho que ela confessa com pudor é tomar uma cerveja quando quer, anedota de uma trajetória emocionante que em Paris não querem que ofusque sua carreira musical.

"Devemos ajudá-la a aprofundar seus conhecimentos e protegê-la dessa reputação agradável e compassiva que se concentra mais em sua história pessoal do que no ofício de reger uma orquestra", disse Fievet.

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