Contexto histórico
Rodrigues lembra que a então capitania de Minas Gerais teve muitas revoltas "notadamente antifiscais" ao longo do século 18. "Desde a Revolta de Vila Rica, em 1720, até a Inconfidência Mineira, de 1789, são variadas as tentativas de revoltas ali conhecidas", aponta. "Onde circula riqueza, como a advinda da mineração, faz com que também haja motins contra as maneiras como a população paga os impostos."
A Inconfidência Mineira foi mais uma dessas revoltas. "Com a participação de grupos sociais variados, que contestavam as maneiras como Portugal gerenciava a administração local", afirma ele.
"Na época, em 1789, a capitania de Minas tinha uma dívida, desde 1771, com a arrecadação dos quintos do ouro de 582 arrobas de ouro ou o equivalente a 8.730 quilos de ouro", explica o historiador. "E o pagamento desses atrasos recairia sob toda a população da capitania, caso se decretasse seu pagamento compulsório, a derrama. Em vista disto e caso a derrama fosse decretada pelo governador, a participação popular seria intensa e isso mobilizava nas autoridades um temor de revolta que envolvia a capitania como um todo, independente do estrato social que a pessoa tinha. Todos seriam cobrados."
"Por talvez congregar a participação dos moradores de Minas e seus planos congregarem interesses diversos, mas atrelados às situações econômicas, a Inconfidência ganhou notoriedade, além de contar com a participação de importantes homens daquela sociedade, como militares, intelectuais, juristas, letrados, religiosos, etc", contextualiza o professor.
"Isto tudo fez com que a Inconfidência se destacasse frente aos demais movimentos rebeldes ocorridos em solo mineiro. Em outras partes do Brasil também havia movimentos de contestação, que também foram variados. Independentemente de quais sejam eles, todos os movimentos rebeldes do século XVIII e princípios do século XIX foram reprimidos e durante o Império foram feitos perpétuos silêncios de suas histórias e personagens."
Rodrigues lembra que "rememorá-los" seria uma afronta "ao poder dominante" — era a mesma casa dinástica que reinava no Brasil, afinal. No próprio Código Criminal de 1830, o Artigo 87 previa penas graves — variando de prisão por pelo menos cinco anos a prisão perpétua — a quem questionasse o imperador. Como Dom Pedro I era descendente da mesma família monárquica contra a qual Tiradentes havia atentado, não era condizente essa memória.
"Somente a partir da segunda metade do século 19 é que a Inconfidência e mesmo o alferes Tiradentes passam a aparecer em eventos públicos, sendo citados como exemplos de liberdade e contestação à ordem monárquica reinante", conta. "Com a República buscou-se construir heróis, nada como eleger o alferes Tiradentes."
"O fato de Tiradentes ser elencado no memorial nacional como o herói nacional se dá por inúmeras razões", elenca Marra. "A priori, o fato de ter transitado por diversas ocupações, empregos e trabalhos, entre os quais destacam-se minerador 'freelancer', comerciante, alferes da Cavalaria de Dragões Reais de Minas e, o labor que o legou a maior fama nacional, dentista prático, o Tiradentes."
"A segunda razão que busca explicar essa exponencial presença, simbólica e nacional, é a referência de associações imagéticas da imagem pessoal e privada de Joaquim Xavier com a imagem de Cristo elaborada pelo Renascimento italiano, isto é: loiro, de olhos claros, cabelos longos incompatíveis com a ocupação de alferes e destacada compleição física", comenta Marra.
"Esse popularismo de Xavier teria sido possível a partir das múltiplas ocupações por ele desempenhadas e pela sua legítima capacidade de cooptar e exercer um certo fascínio em seus discursos, especialmente com os mais próximos", acrescenta ele.
E como o historiador Carvalho pontua no seu livro, era um momento em que a República em formação carecia de um herói nacional que pudesse exercer uma amálgama simbólico em torno dos ideais de transformação política.
"Como os ideais republicanos haviam se manifestado, inclusive, no ideário dos conjurados [da Inconfidência Mineira], ergueu-se um pendão representativo de interesses para a justificativa de um ícone nacional para a República brasileira, tal como fora Napoleão Bonaparte para a República Girondina francesa: uma figura meio humana e, após a sua morte, pesadamente mítica associada aos ideais positivistas e militares dentro das ambições políticas de uma República que se fez a partir das armas, livrando a nação dos ditames imperativos de uma Dinastia herdeira do colonizador", analisa Marra.
Ao mesmo tempo, exaltar Tiradentes significava anular, como pontua o historiador, "com certa intencionalidade, a proposição do nome de Zumbi dos Palmares para a edificação de um mito fundador e simbolicamente viável". Ele virou o mártir da independência, mesmo que esse reconhecimento tenha sido dado já após a República.
Mas apesar dessa narrativa, e do próprio título de herói da independência, não há nenhuma evidência histórica de que os ativistas mineiros do episódio buscassem a emancipação política do Brasil frente a Portugal. A luta parecia ser muito mais por autonomia frente à metrópole do que pela construção de um novo país.
"Tiradentes é considerado herói nacional e também lhe atribuído o epíteto de protomártir, ou seja, ele é considerado o maior dentre todos os mártires do nosso processo de independência. Infelizmente, não há evidências concretas de que os inconfidentes desejavam a independência do Brasil", afirma o historiador Rodrigues.
"Suas falas no processo aberto para julgar seus envolvimentos na Inconfidência Mineira revelam que, antes de pensar no Brasil, eles desejam o rompimento dos laços que uniam a capitania de Minas Gerais do Império português, e que, após o sucesso do movimento sedicioso, outras capitanias poderiam aderir aos mineiros, quase desejassem, como as capitanias do Rio de Janeiro, da Bahia ou de São Paulo."
"Mas, concretamente, eles desejavam ver as Minas Gerais separadas de Portugal e há falas de interesses nesse sentido, de que as Minas Gerais já não aguentavam mais a opressão econômica sentida de Portugal. O movimento tinha como chamariz a decretação do pagamento dos impostos em atraso — a derrama, a ser executada compulsoriamente sobre cada habitante da região", conclui o historiador.
Missiato acrescenta que associar a Inconfidência Mineira a luta pela Independência "não é algo necessariamente controverso, mas sim multifacetado". "Há nesses grupos personagens com interesses pela Independência de Minas Gerais, mas enquanto movimento, a luta principal era pela autonomia da província, da região, e não necessariamente independência política", explica ele.