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Funarte lança livro com textos de autores teatrais negros

Peças já foram encenadas com sucesso no Brasil e no exterior e formam um retrato histórico do que é ser negro no Brasil

A Fundação Nacional de Artes (Funarte), instituição vinculada ao Ministério da Cidadania, lança neste fim de semana (8 e 9 de junho), o livro Dramaturgia Negra. A obra reúne 16 textos teatrais escritos por dramaturgos negros – alguns deles premiados. O lançamento será no sábado no Rio de Janeiro e no domingo em São Paulo. No Rio, integra a programação do Fórum de Performance Negra, no Museu de Arte do Rio (MAR), a partir das 13h. Em São Paulo, será parte do festival Brasil Cena Aberta, às 15h, na Praça das Artes.

“O material foi organizado na contramão da história oficial, rompendo com a escassa representação da dramaturgia negra no meio acadêmico, constituindo-se como um portal para uma outra história possível, que se utiliza das impossibilidades para criar as múltiplas narrativas de um povo negro brasileiro”, explica o curador Eugênio Lima, responsável pela seleção dos textos.

Algumas peças narram desventuras da vida na periferia; outras apresentam a vida dos antepassados de muitos desses autores no continente africano – ora com narrativas realistas, ora com abordagens míticas. Histórias de origem europeia, como O Pequeno Príncipe, foram reinterpretadas de modo a realçar o incômodo que os negros sofrem por viver em um país onde as referências culturais associadas à sua imagem não são valorizadas. O mosaico que compõe Dramaturgia Negra é um tratado sobre o que é ser negro no Brasil contemporâneo.

Segundo o presidente da Funarte, Miguel Proença, ao procurar os criadores da Festa Literária das Periferias (FLUP) para propor a organização de uma coletânea de dramaturgia das favelas, a instituição recebeu de volta a proposta desta antologia, com foco sobre o negro. “O principal argumento para esta edição é que, mais ainda que o morador de favela, o negro tem sido historicamente alijado dos processos de legitimação cultural no país”, destaca.

Com a publicação, de importância histórica, a Funarte registra uma transformação cultural no Brasil. Os atores negros brasileiros são muitos e já vêm há algum tempo conquistando espaço nos palcos e nas telas do país. A autoria dos textos, porém, é um campo só há muito pouco ocupado por negros.

As peças já passaram pelo teste dos palcos: foram encenadas por diretores e atores quase sempre negros, com grande sucesso de público, em diversas cidades do Brasil e do mundo. Há apenas uma exceção: a peça inédita Récita, da poeta e dramaturga carioca Leda Maria Martins.

Sobre as peças

ANTIMEMÓRIAS DE UMA TRAVESSIA INTERROMPIDA -Aldri Anunciação

O texto narra o confinamento solitário de uma mulher africana, escravizada no século XIX, que foi jogada de um navio negreiro no oceano Atlântico no trânsito para o Brasil. Fantasticamente, ela passa a morar no fundo dos mares. Dessas profundezas, ela reflete sobre a contemporaneidade e reconstrói suas memórias por meio de objetos que caem dos navios.

Aldri Anunciação é ator e dramaturgo soteropolitano. Sua peça Namíbia, não!, adaptada do texto com o qual venceu o Prêmio Jabuti de Literatura, foi vista por mais de meio milhão de espectadores.

ESPERANDO ZUMBI – Cristiane Sobral

Uma mulher espera e desespera ansiosamente seu homem e enxerga a si mesma diante dos paradoxos da construção e desconstrução da sua identidade brasileira, negra e feminina. A peça é um manifesto sensível, a partir de um ponto de vista afrocentrado e feminino.

Cristiane Sobral é atriz e escritora carioca. Primeira negra a se formar em interpretação teatral pela Universidade de Brasília, dirigiu por 18 anos a Companhia de Arte Negra Cabeça Feita. Professora de teatro, já ministrou cursos no Brasil, Colômbia, Equador, Guiné-Bissau e Angola.

IALODÊS – Dione Carlos

Cinco atrizes dão vida às “ialodês”, mulheres-abelhas-guerreiras que governam a Colmeia, uma cidade herdada de suas ancestrais. As guerreiras lutam para manter vivas as riquezas deixadas por sua avó e sua mãe, que lhes ensinaram o valor do mel, do ouro e da música. Para combater ameaças que surgem em “mundos paralelos”, as ialodês usam o prazer como arma sagrada e reveladora de sentimentos nobres, como honra, poder, afetividade, sensualidade, liberdade e ancestralidade.

Dione Carlos é escritora e atriz formada pela Escola Globe de São Paulo. Atuou na Companhia Teatro Promíscuo, de Renato Borghi e Élcio Nogueira. Estreou em 2011 com o espetáculo Sete. Escreveu sete peças, encenadas em várias cidades do Brasil. Três dessas obras foram reunidas no livro Dramaturgias do front (2017).

VAGA CARNE – Grace Passô

A peça acompanha uma voz errante que invade o corpo de uma mulher à procura de significados sérios e banais. Em um jogo performático de palavras, questões sobre estereótipos e pertencimento são evocadas nas cenas, em raciocínios que não necessariamente se concluem.

Grace Passô é diretora, dramaturga, atriz e cofundadora do grupo Espanca!. Publicou seis peças teatrais e já teve textos traduzidos para francês, espanhol, mandarim, alemão, inglês e polonês. Foi vencedora do Prêmio de Melhor Atriz no Festival de Cinema de Turim (ITA), entre outros.

FARINHA COM AÇÚCAR OU SOBRE A SUSTANÇA DE MENINOS E HOMENS – Jê Oliveira

O texto para espetáculo de teatro com música é uma homenagem ao legado da banda Racionais MCs. Por meio de “paisagens” de som e imagem, a peça aborda a experiência de ser homem negro na periferia urbana. Uma das propostas do roteiro é provocar uma relação de intimidade entre o público e a trama, por meio da palavra falada e cantada.

Jê Oliveira é ator, diretor e dramaturgo formado pela Escola Livre de Teatro de Santo André, onde leciona atualmente. Professor de teatro em cidades de todo o Brasil, com o projeto Sesc Dramaturgia. Dirigiu o show 3 Mil Tons, de Salloma Salomão, entre outros. Já recebeu os prêmios Shell e Coca-Cola e o troféu da Cooperativa Paulista de Teatro.

BURAQUINHOS OU O VENTO É INIMIGO DO PICUMÃ – Jhonny Salaberg

Um menino negro, nascido e criado em Guaianases, zona leste de São Paulo, vai à padaria a pedido da mãe, no primeiro dia do ano, e é “enquadrado” por um policial. A partir daí, o garoto começa uma saga pela sobrevivência e sai pelo mundo, por países da América Latina e da África. Pelo caminho, ele encontra vários personagens que interligam os acontecimentos da história. Ao longo do percurso, o menino é atingido pelo policial que o persegue, com 111 tiros de arma de fogo

Jhonny Salaberg é ator, dramaturgo e bailarino, nasceu em Guaianases, zona leste de São Paulo. Fundador da Carcaça de Poéticas Negras, foi o primeiro negro a receber o Prêmio da Mostra de Dramaturgia do Centro Cultural São Paulo, em  sua quarta edição.

FLUXORAMA – Jô Bilac

Os dramas de quatro personagens que vivem situações-limite e tornam-se reféns do fluxo de seus pensamentos são o ponto de partida da peça, dividida em quatro monólogos.

Jô Bilac é dramaturgo. Aos 19 anos, escreveu Sangue em Caixa de Areia, texto pelo qual recebeu do Teatro Carlos Gomes menção honrosa em Dramaturgia. Desde então, o autor carioca já criou mais de vinte roteiros teatrais.

CARTAS A MADAME SATÃ OU ME DESESPERO SEM NOTÍCIAS SUAS – José Fernando Peixoto de Azevedo

O monólogo aborda a trajetória de Madame Satã, travesti que foi um dos símbolos da noite carioca na primeira metade do século XX. A peça traz um homem que, fechado em seu quarto, se corresponde por meio de cartas com a personagem.

José Fernando Peixoto de Azevedo é doutor em filosofia e professor de arte dramática na Universidade de São Paulo. Fundador do Teatro de Narradores, publicou o volume Eu, um Crioulo, da coleção Pandemia.

 RÉCITA Nº 3 – FIGURAÇÕES – Leda Maria Martins

A obra é um experimento de linguagem cênica que mescla vocalidades a imagens e música, na composição de breves expressões de um “feminino-mulher” – ora contraído, ora distendido por “vibrações interiores”.

Leda Maria Martins é poetisa, ensaísta, acadêmica e dramaturga carioca. Atualmente mora em Belo Horizonte, onde é professora na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Também lecionou na New York University (EUA) e publicou diversos livros e artigos em periódicos brasileiros e estrangeiros, além da obra de poesia Os Dias Anônimos, entre outras.

SERÁ QUE VAI CHOVER – Licínio Januário

No pulsar da percussão da vida, as ideologias dos personagens Sandra, Bruno e Yuri se chocam, deixando ainda mais turbulentos os encontros e desencontros da cidade grande. Munidos de suas visões individuais, relacionadas às questões sociais contemporâneas, os três acabam seguindo caminhos desconhecidos.

Licínio Januário é ator e dramaturgo angolano. É membro do Coletivo Preto e curador do Teatro Gonzaguinha. Recebeu o Prêmio de Melhor Ator da 19ª edição do Festival de Teatro do Rio de Janeiro.

CARNE VIVA – Luh Maza

Três atores, entre cisgêneros e transgêneros, interpretam a protagonista Uma Mulher, nesse monólogo. A narrativa retrata um “fluxo de consciência”. Em fala acelerada, a personagem conta que frequentava a Igreja Católica antes de se entregar ao teatro. Revolta-se contra a “domesticação” da mulher pelo patriarcado; e revisita episódios de sua história, vivida “em meio a carne e sangue”. A obra tem influências de Virgínia Woolf e Clarice Lispector.

Luh Maza é dramaturga, diretora e atriz carioca, radicada em São Paulo. Autora de espetáculos encenados no Brasil e em Portugal, teve textos publicados na Europa e na África. Assinou a versão brasileira de Kiwi, peça do canadense Daniel Danis. Escreveu roteiro para a série de TV por assinatura Sessão de Terapia, dirigida por Selton Mello.

QUANDO EU MORRER, VOU CONTAR TUDO A DEUS – Maria Shu

Inspirado numa notícia real, a peça narra a história de Abou, um menino refugiado de oito anos de idade, encontrado dentro de uma mala de viagem tentando entrar no continente europeu. Na imaginação do garoto, a mala se transforma na cachorra Ilê.

Maria Shu é dramaturga e roteirista. Estudou roteiro na Academia Internacional de Cinema. Seus textos já foram encenados em Cabo Verde, Suécia, Portugal e França. Sua peça Ar Rarefeito recebeu o Prêmio Heleny Guariba, da Cooperativa Paulista de Teatro.

O PEQUENO PRÍNCIPE PRETO – Rodrigo França

O Pequeno Príncipe Preto discute o empoderamento e a autoestima de crianças e adolescentes negros que não se veem representados na maioria dos livros, bonecas e bonecos que lhes são oferecidos. Permeado por canções e brincadeiras, a peça semeia o entendimento sobre a importância da valorização da diversidade e da empatia.

Rodrigo França é ator, diretor e dramaturgo. Formado pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA), atua na área de educação artística. Produziu ainda o musical O Grande Circo dos Sonhos.

MEDEA MINA JEJE – Rudinei Borges dos Santos

A história é uma adaptação da peça Medeia, do grego Eurípides (480-406 a.C), na qual a protagonista decide assassinar os filhos para se vingar do marido, Jasão, que a abandonou para se casar com uma princesa. A adaptação leva a personagem para o contexto da exploração de escravos nas minas de ouro de Minas Gerais. Nesta versão, a escrava Medea, para impedir que seu filho seja acorrentado a uma mina, ao descobrir a prisão, decide livrá-lo do desse destino, matando-o.

Rudinei Borges dos Santos é dramaturgo e escritor. Autor de mais de dez textos teatrais encenados em Angola e no Brasil, foi contemplado com o Prêmio Funarte de Teatro Myriam Muniz. Fundou o Núcleo Macabéa, da Cooperativa Paulista de Teatro, cujo foco é dramaturgia e história oral nas comunidades de periferia e ribeirinhas.

MERCEDES – Sol Miranda

O texto é inspirado pela vida e obra da bailarina Mercedes Ignácia da Silva Krieger (1921-2014), considerada uma das maiores representantes da cultura afro-brasileira no mundo. Com formação erudita, ela foi a primeira bailarina negra do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, pioneira da dança moderna brasileira e principal responsável pela disseminação das alas coreografadas do carnaval carioca.

Sol Miranda é atriz, pesquisadora e produtora, cofundadora do Grupo Emú – Rio de Janeiro (RJ). Trabalhou como assistente do dramaturgo Domingos Oliveira (1937 – 2019). Circulou em diversas cidades do Brasil e da China com o espetáculo Salina, a Última Vértebra, do grupo Amok Teatro. Apresentou um espetáculo de dança afro no Festival Floriade, na Holanda, em 2012.

CAVALO DE SANTO – Viviane Juguero

A peça mostra os personagens Inácio e Graça. Eles vivem em um apartamento de um cômodo, no qual a única entrada é uma janela e o ambiente, repleto de plantas, retrata uma floresta tropical. Na trama, as raízes exploratórias da cultura brasileira e seus valores moralistas, respaldados por discursos religiosos, se refletem na relação do casal.

Viviane Juguero é dramaturga, atriz, professora e doutora pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), onde trabalhou com o conceito de “dramaturgia radical” – pesquisa associada a seu  estágio internacional na University of Wisconsin-Madison (EUA).