Da geração que invadiu o Brasil inteiro no final da década de 1970, unindo a cultura do Nordeste com a pop universal, Zé Ramalho construiu um legado forte e muito pessoal, como autor e intérprete. Esse mesmo artista chegou aos 70 na última quinta, 3, em comemoração, a equipe do marketing estratégico da Sony Music Brasil, dando prosseguimento ao projeto de digitalização de seu catálogo, restaurando tapes analógicos e projetos gráficos originais de seus antigos vinis, dá mais um grande presente aos fãs da boa música brasileira, especialmente aos fãs do cantor e compositor. Essa celebração inclui os oito álbuns que estavam faltando (do catálogo da Sony) nas plataformas de streaming, e mais 16 faixas bônus originalmente gravadas em projetos diversos e discos de outros artistas.
Além dos 14 álbuns que já estavam disponibilizados, dos oito que entram agora, cinco reaparecem com ótimas faixas bônus. Para começar, seu álbum de estreia na CBS, “Zé Ramalho” (1978), vem com versões de voz e violão para seus clássicos iniciais “Chão de giz” (uma canção de separação alusiva às efemeridades da vida, que como apregoa o título, vão passando e são facilmente apagadas), a emblemática “Avôhai” e mais “Bicho de 7 cabeças”, “Vila do sossego” e a menos conhecida “Rato do porto”, todas gravadas no ano anterior. Seu segundo disco na companhia, “A peleja do diabo com o dono do céu” (1979), que consagrou os clássicos “Garoto de aluguel (Taxi boy)” e “Admirável gado novo”; agora volta com esta última também em versão instrumental, e ainda mais três pérolas: “O desafio do século” (com Paulinho Boca de Cantor, de autoria dele, Luiz Galvão e do próprio Zé), registrada no mesmo ano de 79; “Mr. Tambourine Man” (uma versão do roqueiro Leno para o standard de Bob Dylan, que gravou em 81 com o grupo jovemguardista Renato e seus Blue Caps), e a autoral “Hino amizade”, que defendeu no Festival MPB 80, da TV Globo.
Há ainda os álbuns “Orquídea negra” (1983) (com duas faixas bônus: “Os 12 trabalhos de Hércules”, gravada no ano anterior para o especial infantil “Pirlimpimpim”, da TV Globo, e “A última nau”, para o álbum “Mensagem – Poesia de Fernando Pessoa”, em 86); “De gosto, de água e de amigos” (1985) (acrescido de duas faixas do mesmo ano: o hit “Mistérios da meia-noite”, composto por ele para a novela “Roque Santeiro”, uma das maiores líderes de audiência da história da TV brasileira, e “Oh! Pecador (Sinner man)”, registrada para o projeto “Cantos da libertação do povo de Deus”, do Coral Século XX) e, finalmente, “Frevoador” (1992) reaparece com três adendos: “Sensual (Palácio fácil)”, de Tavito e Aldir Blanc, gravada para a trilha da novela “Fera ferida”; “Dona Chica (Francisca Santos das Flores)”, com Sivuca, para o “Songbook Dorival Caymmi”; ambas de 93, e “Pai e mãe”, de Gilberto Gil, com o cavaquinista Waldir Silva, dos idos de 81.
Completam os lançamentos mais três álbuns do artista: “Pra não dizer que não falei de rock ou por aquelas que foram bem amadas” (1984), destacando uma versão de “The fool on the Hill”, dos Beatles, em dueto com Erasmo Carlos; “Opus visionário” (1986), com sua interpretação para “Um índio”, de Caetano Veloso; e “Décimas de um cantador” (1987), que fechava seu primeiro ciclo na antiga CBS. De sonoridade mais pop, trazia uma joia do musical “Ópera do Malandro”, de Chico Buarque, o “Hino de Duran”.
Um legado de sucesso
Aficionado por Beatles, por artistas da geração Woodstock e cria dos conjuntos de baile dos anos 60, Zé Ramalho largou a faculdade de Medicina para viver de música. Após um longo período mais ligado às canções de feitio anglo-americano, reafirmou suas raízes nordestinas ao entrar em contato com cordelistas e repentistas locais quando fez a direção musical de um documentário a respeito deles em 1974. Esta fusão de elementos passaria a ser uma marca de sua obra já partir de seu primeiro LP solo, logo consagrada na faixa de abertura, “Avôhai” (1978), falando de um “avô e pai”, com uma linguagem ao mesmo tempo local e universal, destacando-se num grupo de nordestinos, na maioria universitários, que sucederam a geração inicial de Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Abdias dos 8 Baixos, Marinês e sua Gente, Trio Nordestino, Gordurinha, Jacinto Silva e tantos outros, agora incorporando instrumentos elétricos e letras com elementos mais urbanos das grandes cidades do Sudeste, para as quais se mudaram.
Era justamente a turma composta por Belchior, Ednardo, Alceu Valença, Geraldo Azevedo, Amelinha (esposa de Zé à época), Elba Ramalho (sua prima), o guitarrista Robertinho do Recife e Fagner – para citar os mais célebres. Este último, contratado da CBS desde 1976, atuou como uma espécie de diretor artístico informal da gravadora, influindo decisivamente na contratação da maioria desses nomes, inclusive Zé Ramalho.
Com sua voz grave e interpretação de contornos proféticos, messiânicos, marcou época inicialmente com canções algo surrealistas, repletas de misticismo e imagens cinematográficas, como as “Chão de giz”, “Vila do sossego”, “A terceira lâmina” e “Mistérios da meia-noite”, e o petardo de crítica social, “Admirável gado novo” (“Ê, ô, ô, vida de gado/ Povo marcado ê/ Povo feliz”), além de imortalizar “Eternas ondas” na voz de Fagner e também “Frevo mulher” e “Mulher nova bonita e carinhosa faz o homem gemer sem sentir dor” na de Amelinha. Todas elas estouraram entre 1978 e 85. A partir de então, viveu um período de entressafra, para voltar com força total a partir do bem sucedido projeto “O grande encontro” (1996), ao lado dos amigos Alceu Valença, Geraldo Azevedo e Elba Ramalho, sucedido pelo duplo “20 anos – Antologia acústica” (1997). De lá para cá, continuou brilhando em álbuns autorais e projetos-tributo.