Para alguém que gosta de novela não tem coisa pior do que assistir ao seu programa favorito ao lado daqueles que não seguem a trama e adoram fazer perguntas difíceis - "essa tonta não está vendo que a bandida vai roubar o pendrive?", ou "só mesmo uma toupeira para não perceber que o marido está arrastando asa para a outra ali, ó". Afinal, é preciso embarcar em alta dose de fantasia para não perceber alguns recursos que os autores normalmente usam para fazer a história andar. É o caso, por exemplo, do porteiro que nunca interfona para o apartamento da mocinha avisando que a vilã vai subir - se ele avisasse, ela, a megera, iria embora e, pronto, acabou a novela.
A novela precisa fazer sentido, a realidade, não, já disse aqui no TV & Lazer o experiente Manoel Carlos. Por isso, no afã de criar uma situação engraçada, de escalar uma atriz deslumbrante para viver uma mulher sofrida, de juntar lé com cré ou dar um desfecho cinematográfico a determinados personagens, os autores pesam a mão e escrevem cenas que acabam entrando para o folclore noveleiro. É aquela coisa que a gente vê e diz "ah, só acontece em novela!". "Só acontece em novela, porque só novela é novela", resume o autor Silvio de Abreu. "Ou seja, as pessoas se encontram todas na mesma hora em um determinado restaurante, o mocinho e a mocinha se apaixonam no primeiro encontro, um personagem chega bem na hora em que o segredo está sendo revelado, etc e etc..."
TUDO É POSSÍVEL
Silvio não tem medo do clichê, muito pelo contrário. Se tivesse medo, aliás, não teria escrito algumas das cenas mais divertidas da teledramaturgia nacional. "Tudo isso faz parte do gênero, é clichê sem dúvida, mas se clichê fosse ruim não teria sido tão repetido até virar clichê... Novela é a arte de fazer o impossível ser crível, de fazer o absurdo ser possível... É fantasia, é diversão", anota. "Tomo muitas e muitas ?licenças poéticas? porque essa é a essência do folhetim e novela que não é folhetim, para mim, não interessa."
É claro que nem todo autor consegue manejar bem os clichês ou as situações do tipo "até parece que", de modo que não pareça um desafio à inteligência do telespectador. Um caso clássico é aquele em que a gravidez da mocinha transcorre num tempo que parece totalmente descolado da trama. Mas todos os autores, sem exceção, precisam de tais recursos para fazer a trama andar e acontecer.
Em novela, a dose de coincidência à disposição no universo é usada sem economia. Se o autor quiser, e precisar, o mocinho sempre vai encontrar a mocinha por acaso, onde quer que seja - no Leblon ou no deserto do Marrocos. "Em Prova de Amor (2006), por exemplo, eu dei um jeito do Velho Gui (Rogério Froes) ser pai da Clarice (Lavinia Vlasak) e ao mesmo tempo da Joana (Bianca Rinaldi), de modo que seus netos Nininha (Julia Magessi) e os gêmeos (interpretados por Pedro Malta) eram sequestrados e se encontravam ?por coincidência? na casa da bruxa sequestradora Elza (Vanessa Gerbelli)", relembra Tiago Santiago, hoje no ar com o remake de Uma Rosa Com Amor (SBT). "É o tipo de coincidência que é, na verdade, a mão do destino para fazer a família toda se reunir. O mesmo artifício é usado por grandes autores, como Charles Dickens ou Molière, entre dezenas de outros", completa o autor, dando a dica de que as coincidências em novela não têm data para acabar.
Reunimos algumas licenças poéticas notáveis e/ou divertidas da teledramaturgia dos últimos tempos. E autores, sem medo, contam alguns dos seus maiores exageros na hora de criar situações.
Modelo de retirante
Foto: João Miguel Jr./Divulgação
A escalação da bela Carolina Dieckmann como a sofrida Maria do Carmo jovem - que sai com os cinco filhos do sertão rumo ao Rio - é a maior licença poética de Aguinaldo Silva em Senhora do Destino (2004). No caminho, aparece um Rodrigo Hilbert caminhoneiro.
Pai a granel
Foto: João Miguel Jr./Divulgação
Está certo que Caminho das Índias (2009) teve alta dose de alegoria e delírio. Mas o desfecho do César (Antonio Calloni), que é cercado por um bando de filhos gerados a partir de um banco de sêmen (para o qual ele prestara serviços), é deveras fantasioso.
Beleza roubada
Foto: Marizilda Cruppe
Não houve quem não estranhasse ver Patrícia Pilar como a sem-terra Luana, de Rei do Gado (1996). Mas foi só um estranhamento inicial, por causa da beleza da atriz. Logo, ela mostrou que o papel seria um dos mais marcantes de sua carreira.
Pra lá de Marrakesh
Nunca foi tão fácil cruzar o oceano como em O Clone (2001). Na novela de Glória Perez, os personagens que transitavam entre o mundo muçulmano e a cultura ocidental iam do Rio de Janeiro para Fez num pulo, como se fosse logo ali.
Entre quatro paredes
Safira (Cláudia Raia) e Pascoal (Reynaldo Gianecchini) eram tão fogosos, que as paredes da oficina dele não aguentaram quando o casal foi "aos finalmentes" no último capítulo de Belíssima (2005), de Silvio de Abreu, uma cena que lembra as chanchadas.
Sortuda!
Imagine como é mínima a chance de você rodar um documentário na Índia com "uma câmera na mão e uma ideia na cabeça" e, no fim, ser convidado para seguir carreira em Los Angeles. Pois foi esse o final feliz de Leinha (Júlia Almeida) em Caminho das Índias (2009).
Cada um com seus ?pobrema?
Antônio Fagundes é ator para qualquer tipo de papel. Mas não cola mesmo a história de que o Leal, de Tempos Modernos, é analfabeto. Como ele pode ser analfabeto com aquele vocabulário tão elaborado? Até agora não disse uma palavrinha errada sequer.
?La garantia soy yo!?
"Cometemos muitas licenças poéticas, tantas que a gente nem lembra... Uma das maiores, em Cama de Gato, foi todo mundo acreditar que o Sólon (Daniel Boaventura) era argentino. Com aquele sotaque?", diz Thelma Guedes, que escreve a novela com Duca Rachid.
Rendas e fricotes
"Em Uma Rosa Com Amor, o Vicente Sesso criou uma situação engraçada, que está na nova versão, exatamente como na original: a protagonista Serafina Rosa (Carla Marins) disputa um pedaço de renda numa loja de tecidos com a vilã Nara (Mônica Carvalho). Rola uma discussão, tipo barraco, entre as duas, e logo depois, elas se encontram no escritório de Claude (Cláudio Lins), que será disputado por elas)", diverte-se Tiago Santiago, autor do remake no SBT.
Baldes de groselha
Não dá para imaginar quantos bois Flora (Patrícia Pilar) precisaria ter guardados no freezer para conseguir forjar o banho de sangue que terminou na morte - por ataque cardíaco, depois de muito nervosismo - do doce Gonçalo (Mauro Mendonça) em A Favorita (2008).
?Na chon!?
"Confesso que exagerei um pouquinho quando fiz Maria do Carmo (Regina Duarte) se desesperar dentro do prédio da Sucata, enquanto dona Armênia (Aracy Balabanian), no exterior, brigava com um engenheiro japonês para que o prédio fosse implodido, sem levar em conta que tinha gente lá dentro. Mas foram ótimas cenas, valeu a pena", diz Silvio de Abreu.