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Com 30 anos, álbum de estreia de Madonna fez resgate da disco music

Filha da liberação de Stonewall e usufruindo dos direitos da mulher conquistados nos anos anteriores, Madonna chegou em Nova York nos anos 70.

Em uma típica noite quente e agitada do verão novaiorquino, um grupo de homens vestidos de mulheres, mulheres vestidas de homens, hippies e protestantes se reuniram na frente do Stonewall Inn para proclamar que a cidade de NY não era mais dos conservadores: era chegada a hora do underground, dos gays e da cultura alternativa tomarem conta e sair das trevas condenadas pelas autoridades.

O ano era 1969, e a Rebelião de Stonewall abriu caminho para a diversidade sexual, cultural e musical que dominaria a esfera urbana dos EUA nos anos seguintes. O grito de liberdade "Nós somos as garotas de Stonewall. Nós usamos nossos cabelos encaracolados. Não usamos roupas de baixo. Mostramos nossos pelos púbicos. Nós usamos nossas roupas acima do joelho!" foi o estopim para muito do que viria na cultura pop - inclusive a então jovem Madonna, que 14 anos depois chegaria no mundo pop pela porta da frente com o lançamento de seu primeiro álbum de estúdio. O álbum, homônimo, completa 30 anos neste sábado (27), e demonstra mais do que nunca a importância de Madonna como uma artista capaz de personificar o espírito de sua época ao mesmo tempo em que aponta para as diretrizes do futuro.

Cultura disco

Filha da liberação de Stonewall e usufruindo dos direitos da mulher conquistados nos anos anteriores, Madonna chegou em Nova York nos anos 70 vinda de Michigan para estudar dança sob a tutela do famoso Pearl Lang, que arranjou para a jovem um emprego no bar/restaurante The Russian Tea Rooms. Começando a circular na sociedade liberal da cidade e entrando em contato com artistas da cena underground, a jovem largou a vida de dançarina para se dedicar à música, com um primeiro emprego como baterista da banda de ska The Breakfast Club. Aos poucos construindo sua identidade própria, Madonna se lançou em carreira solo tocando em qualquer bar de esquina da cidade, enquanto absorvia inúmeros elementos da cultura gay/alternativa.

Gravando em esquema caseiro e com a ajuda de vários amigos/associados da noite, Madonna registrou as demos de suas primeiras músicas em uma fita cassete, que começou a circular pelos principais DJs underground da cidade. Eventualmente, o material caiu nas mãos de Mark Kamins, A&R da Island que imediatamente entendeu o apelo pop das músicas e correu para o estúdio. A escolha, no caso, foi paradigmática - o Blank Tape Studios, de Bob Blank, que ajudou a moldar trabalhos de artistas como Chic, Sun Ra, Tito Puente e Sting e cujas gravações foram essenciais para a evolução da disco music com DJs como Larry Levan (do lendário clube Paradise Garage), Nicky Siano e Tony Humphries.

A disco music - música que simbolizou a ascensão de clubes underground e de uma nova liberdade sexual, política e racial - passou por apuros no fim dos anos 70 com o ranço de homofobia, racismo e conservadorismo musical que chegou a uma apoteose em 1979, quando o radialista Steve Dahl convocou o público no estádio de beisebol Comiskey Park para armar uma fogueira de vinis da disco. Escolada nas pistas underground de Nova York, Madonna passou a juventude dançando ao som da disco, e sabia que a resistência do mainstream em relação ao som glorioso e sintetizado do gênero era muito mais um problema com as minorias simbolizadas por ele do que pelo som em si.

Ao entrar no Blank Tape Studios, ela não hesitou: após alguns embates iniciais com os produtores e engenheiros de som, Madonna conseguiu transmitir para músicas como "Holiday", "Lucky Star" e "Borderline" os sintetizadores brincalhões e o clima exultante de pista paradigmáticos da disco music, trazendo também influências do hip hop e do R&B ("Everybody", primeiro single de sua carreira lançado em 1982) e mesclando tudo isso em um pacote com acabamento pop e refrões irresistíveis.


Com 30 anos, álbum de estreia de Madonna fez resgate da disco music

Esse amálgama visionário de influências influenciou não só praticamente todos os artistas pop que vieram depois como a própria Madonna veterana, que em álbuns posteriores tentou retomar o vigor e a mistura de estilos de seu disco de estreia.

Contemporâneos

1983 foi um ano agitado não só para Madonna como para o mundo pop. Um mês depois da estreia da cantora pop chegou o clássico "Thriller", de Michael Jackson, com sete canções que foram parar no topo das paradas e uma mistura irresistível de elementos da Motown, funk, R&B e pop puro e simples. As bases vigorosas e o apelo de pista do álbum influenciaram os álbuns posteriores de Madonna, que aos poucos se afastou da inicial sonoridade disco/synth para explorar outras searas musicais ao redor do pop.

Quando o assunto é pop, aliás, 1983 teve também outro álbum importantíssimo: "She"s So Unusual", disco de estreia da musa pop Cyndi Lauper que mesclava sons do synthpop a la Eurythmics com bases orientadas pela voz fortíssima da cantora. Em questão de orientação puramente pop, o disco de Cyndi cumpre mais essa função, enquanto Madonna ainda estava experimentando sonoridades pautadas pelo underground e buscando um som que seria modificado ao longo dos anos a partir das múltiplas imagens e personalidades encarnadas pela cantora.


Com 30 anos, álbum de estreia de Madonna fez resgate da disco music

Por suas influências fortes do R&B e do início do hip hop, o disco de estreia de Madonna chegou às lojas inicialmente como um álbum de uma artista negra. Embora as tiragens posteriores já mostrassem o rosto da cantora, essa confusão inicial (e proposital) mostra o comprometimento das primeiras faixas da cantora com sons da black music - no mesmo ano em que o engenheiro e marqueteiro do punk Malcolm McLaren lançou "Duck Rock", que tentou capitalizar em cima da música negra com um amálgama de estilos da África, América do Sul, EUA e Caribe.

1983 foi também o ano do clássico do synthpop "The Art of Falling Apart", do Soft Cell, cuja influência está em inúmeras melodias do álbum de estreia de Madonna e na pegada nu-disco de várias bases. A androginia de Annie Lennox do Eurythmics, que apareceu vestida de homem e mulher no clipe de "Love is a Stranger", é também contemporânea da postura sexualmente ambígua de Madonna, abrindo caminho para uma carreira na qual a artista ofendeu o Vaticano, transformou crucifixos em objetos de conotação sexual, encarnou uma noiva erótica e simulou masturbação no palco.