Por Wellington Soares
Nascido em Palmeirais, o psiquiatra e escritor Edmar Oliveira morou em Codó, viveu a juventude em Teresina onde participou de movimentos culturais e concluiu o curso de Medicina. Depois foi fazer graduação no Rio de Janeiro, onde reside atualmente.
Militante do Movimento de Luta Antimanicomial, escritor tardio, comunista utópico e socialista desejante, Edmar Oliveira diz que quem escreve dialoga com seus fantasmas numa necessidade de manter viva a memória. "O que faz a literatura não é a recuperação memorialista cronológica, mas esse diálogo com os fantasmas que nos constituiu", diz.
Na entrevista ele fala de sua vida, de sua relação com Teresina que considera uma namorada inesquecível e de seu livro mais recente "Não existe pretérito perfeito" e da relação de proximidade entre psiquiatria e literatura.
Mia Couto afirmou que o poeta, no sentido amplo, é aquele que conversa com as sombras. Que acha disso?
Edmar Oliveira: Acho que o Mia Couto assume o papel político de tirar das sombras o passado de Moçambique, quase todo sustentado por uma frágil cultura oral, que o colonizador português sempre tentou apagar. Nesse sentido, conversar com as sombras, é uma missão da literatura de Mia para não deixar morrer a cultura que constituiu Moçambique. Mas no sentido amplo ele também tem razão. Quem escreve dialoga com seus fantasmas numa necessidade de manter viva a memória que constituiu o escritor. O velho Graça é soberbo na reconstituição de sua infância na obra que assim nomeou. O que faz a literatura não é a recuperação memorialista cronológica, mas esse diálogo com os fantasmas que nos constituiu, que apesar de deformar a realidade, aproxima o real fantasmagórico da ficção criada. E como nada se cria – a química da literatura ficcional contém pedaços do escritor na ficção.
Que motivos o levaram a deixar o Piauí e migrar pro Rio de Janeiro? Já pensou em voltar?
EO: Já faz bastante tempo. Saí muito jovem. Teresina tinha a metade da população que tem hoje e o provincianismo era muito forte. Talvez hoje não tivesse saído. Como me envolvi com a cultura desde muito cedo, a visibilidade com que conquistei (sem querer) dificultava exercer minha profissão. Buscava naquele momento um anonimato que só uma cidade grande poderia me dar. Hoje, olhando pra trás, tenho muito mais tempo de vida no Rio do que vivi em Teresina. Teresina me passou de relance, um pouco de adolescente e pouquinho do adulto. Toda a minha infância foi em Codó, no Maranhão, apesar de ter nascido em Palmeirais. Não tenho mais dúvidas de que me casei com o Rio, apesar das dificuldades que a cidade atravessa. Teresina é uma namorada antiga inesquecível. De vez em quando a vejo, mas não tenho mais idade para uma paixão juvenil. Vou ficando no Rio.
Há afinidades entre psiquiatria e literatura, duas áreas nas quais você atua?
EO: Diria que as duas trabalham com o inconsciente. A prática em Saúde Mental, diferente da prática médica, trabalha uma clínica da narrativa e não uma clínica da evidência. Explicando: num infarto o médico tem de atuar rapidamente com os sintomas evidentes da crise. Na Saúde Mental, mesmo o paciente em crise, é preciso paciência do médico para entender a narrativa da história que o paciente conta. Portanto no método, minha profissão está muito próxima da literatura. Passo de uma à outra sem dificuldades.
Retomar à ditadura militar em "Não existe pretérito perfeito", seu livro mais recente, foi mero resgate histórico de uma época ou um alerta aos que defendem um regime de exceção sem saber o que isso representa de fato?
EO: Fui tomado pela história que narro em “Não existe pretérito perfeito” logo após a eleição de Bolsonaro. O enredo foi aparecendo com um diálogo com os fantasmas do passado. E todos os elementos estão ali: o torturador como uma pessoa entre nós no papel de homem de bem; a prática da tortura sem a culpa do nosso homem de bem nas dores infringidas em que ousa discordar do “bem”. O namoro da psicanálise com a tortura, que na vida real foi representada por Amílcar Lobo, de triste memória; o parentesco entre torturados e torturadores; e o Brasil, um casarão, onde moram todos os personagens. Duas revelações: namorei um casarão em Botafogo, de fato, para fazer dele meu personagem principal e nele coloquei meus personagens-fantasmas. Um desses personagens, o filho do militar torturador (nenhum personagem tem nome) tomou vida durante a escrita e ficou bem maior do que tinha imaginado. De fato, é nele que me encontro com os fantasmas que nos assombraram no passado. E o livro é um aviso medroso do que podia nos acontecer. E, para desgraça de todos nós, minha previsão vem se concretizando. Ainda tenho esperança de que o livro perca a razão. E fico muito triste por estar acertando.
Dois personagens são emblemáticos em Sitiado: o matuto Teodoro, alma pura do povo, e o fascinante Manuel Bernardino da Mata, síntese de espírita/vegetariano/socialista. Com qual deles você e os leitores se identificam mais?
EO: Manuel Bernardino, o Lenine da Mata, de fato existiu. Tentei fazer uma pesquisa em Dom Pedro, mas quando liguei para a biblioteca pública da cidade fui informado que nada existia sobre o personagem, mas que muitos velhos na cidade sabiam de sua história. Não fiz uma viagem até lá para pesquisar melhor e me ative ao Diário da Coluna Prestes, de Lourenço Moreira Lima, escrito no calor da luta. De lá tiro o personagem da realidade para jogar na ficção. Depois de ter escrito meu livro, soube de um média-metragem da Maranhense Rose Panet – um documentário sobre a memória de Manuel Bernardino. Entrei em contato com ela e mandei meu livro. Tínhamos programado fazer uma exibição do filme junto com um relançamento do livro no Maranhão, mas aí veio a pandemia e não foi possível. Aqui vai o link para o filme da Rose: https://www.youtube.com/watch?v=UVGNmU3afYU . Foi uma grata surpresa e, embora eu não a conheça pessoalmente, posso dizer que somos amigos e trocamos muitas informações sobre literatura e cinema. Outra curiosidade, no filme é Zeca Baleiro que faz a voz nos discursos de Bernardino. Quando estive no Piauí no último Salipi, fiquei no mesmo hotel que o Zeca e Salgado Maranhão nos apresentou. Dei um livro para o Zeca Baleiro que gostou de saber que o Bernardinho estava no livro. Mas voltando à pergunta feita, Teodoro – o ingênuo da ficção e Bernardino são dois personagens marcantes, que facilmente cativam os leitores (muitos falaram deles). Mas o meu preferido é o mascate Abdon, que representa os árabes que ajudaram a formar o Maranhão e Piauí com suas viagens pelo sertão tocando matraca e trazendo objetos cobiçados pelas mulheres que viviam naquelas brenhas. O nome do personagem foi tirado de uma música do Gonzaga, que certamente homenageava os árabes do sertão.
Antes de cometer suicídio, Torquato Neto deixou um bilhete ao filho Tiago. Que bilhete você, que o conheceu pessoalmente, escreveria a ele depois de 49 anos após sua triste partida?
EO: “Rapaz, você não foi muito apressado em 72? Gostei não”.
A literatura piauiense tem muitos poetas e poucos romancistas. Há da sua parte, com cinco livros publicados, intenção de ocupar esse vazio em nossa ficção?
EO: Uma confissão: a poesia é a mais maravilhosa das artes e engana muitos que se dizem poetas. E hoje é para quem sabe usar o “paideuma” poundiano (Erza Pound – 1885/1972) com sabedoria. No mundo da pressa ninguém que gastar tempo como escreviam os clássicos. Outra característica do poeta é arrancar das palavras o indizível. Tanto na onomatopeia do mestre Da Costa e Silva (“Ringe e range, rouquenha, a rígida moenda”), seja na cirurgia de Salgado Maranhão limando a palavra para lhe dá novo sentido (“não cantarás aos muros de arrimo tua fantasia de pássaro”). Confesso que não tenho esse talento e fazer versos onde apenas se quebre o pé das palavras e se supõe que a rima já faz a poesia é falsificar o poeta. Acho mais fácil o romance, mas é preciso não ter preguiça no enredar a trama. Mas não me vejo ocupando qualquer lugar na literatura piauiense. Já temos muito bons escritores. Eu só desejo conversar com meus fantasmas.