A vitória do "sim" no referendo constitucional boliviano realizado no último domingo (dia 25) desenha um cenário complexo porque, apesar de o presidente Evo Morales ter obtido um apoio suficiente, inclusive amplo pelos parâmetros europeus (segundo as pesquisas ficará próximo de 60%), também é verdade que o "não" triunfou na chamada meia-lua, a região leste do país, onde quatro departamentos (dos nove em que se divide a Bolívia) deixaram clara sua rejeição. A meia-lua não ficou aniquilada nem se viu obrigada a apresentar a capitulação, como esperavam os representantes do governo.
Do ponto de vista de Evo Morales, a vitória é suficiente, mas complicada, não só pela clara vitória do "não" na região oriental do país, como porque, em conjunto, o presidente perdeu alguns pontos em relação a votações anteriores e sobretudo porque começa a surgir uma certa rejeição nas áreas urbanas. Poderia se dizer que a nova Constituição arrasou nas zonas rurais e camponesas (com 82% a favor e só 18% contra), mas que nas cidades o apoio foi muito mais matizado (52% a 48%), talvez porque o novo projeto tenha despertado fortes receios na pequena classe média mestiça. Na capital, La Paz, por exemplo, feudo tradicional de Morales, o "sim" não superou 52%, enquanto em todo o departamento chegou a 76%.
A vitória do "não" na meia-lua sem dúvida dará força à oposição, muito abatida pelo péssimo resultado que obteve há um ano no chamado referendo revogatório. Nesta ocasião demonstrou que não está derrotada e que reforçou seu poder no leste, deixando claro que Evo Morales tem maioria, mas não uma hegemonia territorial. A oposição não pode, entretanto, comemorar, porque também tem sérios problemas: não é capaz de romper o teto de 40%, não tem um líder em nível nacional capaz de concorrer com algum êxito na zona ocidental do país e não tem um projeto de âmbito nacional capaz de calar entre a população indígena majoritária. Inclusive em Chuquisaca, o único departamento com maioria indígena que tem uma governadora, Savina Cuellar, crítica acirrada de Morales, foi o presidente quem saiu vencedor, embora por muito pouco: 51% a 49%. Cuellar, que fez uma intensa campanha pelo "não", afirmou que continuará "a resistência".
Nessas condições, é muito provável que a nova Constituição não melhore a governabilidade do país, mas que sua aplicação dê origem a novos conflitos. "Com esse resultado, o presidente Morales tem de compreender que não pode construir o novo país que pretende criar", afirmou Branko Marinkovic, presidente do Comitê Cívico de Santa Cruz, o organismo pró-autonomia que encabeçou até agora a "rebelião" da meia-lua. A oposição se esforçou imediatamente para construir uma imagem de "empate técnico" (levando em conta só o âmbito territorial), que obrigue Morales e seu governo a embarcar na negociação de um grande pacto nacional.
A ideia é negociar a aplicação dos estatutos de autonomia já aprovados nos departamentos "rebeldes", em muitos aspectos radicalmente contraditórios com o conteúdo da nova Constituição. Oscar Ortiz Antelo, presidente do Senado, um órgão legislativo no qual Morales não tem maioria, pagou ontem um anúncio na imprensa para defender a ideia desse pacto nacional que, na realidade, quer deixar sem efeito parte da nova Constituição.
As primeiras reações de Evo Morales e de seu governo não indicam que esteja considerando essa possibilidade. Pouco depois de se conhecer o resultado do referendo, Morales apareceu no balcão do Palácio Quemado em La Paz para felicitar seus seguidores. "Aqui não há nenhum empate", disse. "Aqui não há nenhuma meia-lua, mas uma lua cheia, com a unidade do povo boliviano". Mesmo apoiando-se nos 60% de votos favoráveis à nova Constituição (e nos 78% que aprovaram que se limite a extensão máxima das explorações agrárias a 5 mil hectares), o presidente anunciou a refundação de uma nova Bolívia, na qual se acabaram o colonialismo, o neoliberalismo e o latifúndio.
O presidente, que será submetido dentro de poucos dias a uma operação cirúrgica devido a um problema nasal, não ofereceu nenhum pacto, mas deixou aberta a porta para a "coordenação" necessária para implementar a Constituição. No entanto, a maioria dos analistas considera que Morales, que pode se apresentar para um segundo mandato presidencial, está analisando a possibilidade de antecipar as eleições e não esperar até 2010 para se submeter novamente às urnas.