Por duas vezes Warry Senfuka interrompe a entrevista. Na primeira delas apenas olha para a funcionária do hotel que, enquanto limpa uma mesa, tenta ouvir o que ela diz. Na segunda, reclama da insistência da camareira, que continua a prestar atenção na conversa, em um misto de curiosidade e reprovação.
"Não estou confortável com essa mulher limpando aqui toda hora. Por que ela está limpando a mesma mesa duas vezes?", indigna-se Warry.
A funcionária sai com ar de deboche. Só pela roupa de Warry, ela já sabe que trata-se de uma homossexual. Não gosta disso e nem sequer disfarça. Ela faz parte da maioria da população de Uganda que quer a aprovação de um projeto de lei que prevê prisão perpétua e até pena de morte para os homossexuais. O texto, de autoria do deputado David Bahati, tramita no Parlamento desde outubro de 2009 e deve ser votado até o final de maio. Tanto quem é a favor como quem é contra a nova lei concorda que ela exprime a vontade da maioria dos ugandenses. Em fevereiro, cerca de 25 mil pessoas fizeram uma manifestação a favor da lei em Jinja, segunda maior cidade do país, a 87 km da capital Kampala.
esse ambiente de terror interfere nas nossas vidas, não podemos ir a qualquer lugar. Eu só ando perto de casa e do escritório, há muito tempo que não vinha à cidade"
Warry Senfuka
"Eu não quero usar vestido. Quero me vestir assim, com essas roupas", reclama Warry, com calça jeans, camisa social masculina e uma pulseira com as cores do movimento gay. "Aí eles já sabem que sou homossexual e me olham torto. Muitas pessoas já foram atacadas, inclusive fisicamente. Uma vez passei em um bar e um bêbado gritou: "Vou te ensinar a ser mulher". Sigo em frente. Mas é claro que esse ambiente de terror interfere nas nossas vidas, não podemos ir a qualquer lugar. Eu só ando perto de casa e do escritório, há muito tempo que não vinha à cidade", conta.
Warry participa de uma Organização não-governamental que tenta proteger os direitos dos gays em Uganda e informar sobre prevenção à Aids. Por segurança, a casa que abriga a ONG não tem nenhuma identificação e o acesso à ela é restrito. O motorista ugandense que acompanhava a reportagem do G1 não pôde entrar, a pedido de Warry.
Se o projeto de lei for aprovado, a ONG automaticamente cairá na ilegalidade.
"Se a homossexualidade virar um crime, é claro que este tipo de estabelecimento terá que ser fechado. Por acaso você permitiria que houvesse uma organização de ladrões, por exemplo?", compara o Ministro da Ética e Integridade de Uganda, James Obuturo, um defensor da nova lei.
Caso ela passe no parlamento, qualquer pessoa que se declarar gay será condenada à prisão perpétua. Quem tentar persuadir uma criança a ser homossexual será punido com a morte. Os termos do projeto, além de polêmicos, são bastante vagos e subjetivos. Já há uma legislação anti-gay em vigor em Uganda, de 1949, quando o país ainda era colônia inglesa. Ela, no entanto, é mais branda e só prevê prisão com um flagrante do ato sexual.
Mesmo assim, na prática os homossexuais já vivem praticamente na ilegalidade. Frank Mugisha, 26 anos, cercou-se de todos os cuidados antes de dar entrevista ao G1. Não respondeu emails e só concordou em falar ao saber que se tratava de um veículo estrangeiro. Mesmo assim, decidiu o local apenas 15 minutos antes da hora marcada. Um hotel no centro de Kampala, onde Frank já estava sentado havia meia hora observando o movimento.
"Preciso ter cuidado do que falo, para quem falo, mesmo que seja por telefone ou por email. Tenho que estar atento, olhar para as minhas costas mais do que qualquer um. Acordo todos os dias sem saber o que realmente pode acontecer comigo. Há lugares que eu evito, porque sei que são muito perigosos para ir. Nunca fui atacado fisicamente, mas já escapei de situações perigosas. É muito arriscada a vida de um homossexual em Uganda. Você não pode andar tranquilo na rua, fazer compras? Fico trocando de casa o tempo inteiro. Onde estou agora é seguro, as pessoas passam o dia inteiro fora, trabalhando, e não têm tempo de se preocupar com a vida dos outros. Mas se perceberem que sou gay, terei que me mudar de novo para minha própria proteção", explica.
Muitas pessoas em Uganda acham que a homossexualidade é uma doença, que ela pode ser mudada ou curada. Alegam também que é uma coisa que vem de fora, como se alguém nascido em Uganda simplesmente não pudesse ser gay"
Frank é um dos líderes do movimento gay em Uganda. Assim como Warry, diz que não consegue emprego por preconceito, embora ambos sejam formados.
Apesar da aprovação popular, ele apoia-se na pressão internacional para manter sua esperança de que o projeto não vire lei. O presidente dos EUA, Barack Obama, classificou o texto como "inaceitável e odioso" e países como Suécia e Inglaterra estudam sanções a Uganda caso o projeto vire lei.
"Muitas pessoas em Uganda acham que a homossexualidade é uma doença, que ela pode ser mudada ou curada. Alegam também que é uma coisa que vem de fora, de países europeus, como se alguém nascido em Uganda simplesmente não pudesse ser gay. Sexo, mesmo o heterossexual, ainda é um tabu na África. E aqui as pessoas só olham para o homossexualismo como uma questão sexual, como se fosse apenas isso. Dizem que alguém vira homossexual porque quer ganhar dinheiro fácil ou porque andou com más companhias. Mas eu sou um exemplo de que as coisas não são assim. Fui criado numa boa família, estudei em bons colégios e sou gay. Porque orientação sexual não tem nada a ver com essas besteiras que falam, você simplesmente é assim", argumenta Frank.
Em breve Uganda pode se tornar o quinto país africano com pena de morte para gays, como acontece no Sudão, na Mauritânia e em algumas regiões da Nigéria e da Somália. A perspectiva preocupa muito, mas não é suficiente para afastar Frank e Warry do país. Mudar-se para o exterior é a última opção para eles, já tão acostumados com a clandestinidade.
"Dizem que sou uma das mais corajosas? Se a lei passar serei uma das últimas a permanecer de pé. Vou até o fim. Só saio se as coisas ficarem realmente insustentáveis", promete Warry.
"Vou continuar batalhando pelo que acredito, só vou deixar Uganda se for impossível permanecer aqui", reforça Frank.