Por Wellington Soares
Estou por ver uma pessoa tão apaixonada pelo teatro quanto a Isis Baião. Ela respira, fala, escreve, comenta, ministra oficinas, assiste e, não bastasse, personifica o próprio teatro. Literalmente, sem exagero. Não à toa afirmar, nesta bela entrevista, que “amo o teatro desde quase sempre”. Ainda na adolescência, mandava buscar peças no Rio, que lia com voracidade e prazer. Depois sonhou em ser atriz, caindo fora ao não encontrar sua praia. A dramaturgia representou, finalmente, o tão almejado grito de Eureka! E não é que esse encontro amoroso entre os dois, para nossa felicidade, perdura firme e inabalável até hoje.
Além da fissura pelo teatro, Isis nos fascina por ser uma pessoa amável, educada, doce e de sorriso franco. Daquelas que inspiram confiança, acolhimento. Que nos trata de imediato, no primeiro encontro, como velhos amigos. A conversa brotando espontânea, descontraída, sem tabus de qualquer natureza. Sem falar de uma mulher inteligente, de senso crítico, antenada com seu tempo. Daí produzir um teatro, a exemplo de Nelson Rodrigues, distinto do bombom com licor. Na realidade, como arma para falar das coisas que realmente interessam: sentimentos, ética, política, humanismo, conflitos, tragédias e problemas sociais.
Foi no Rio de Janeiro onde tudo começou. Ainda cursando Jornalismo na PUC, percebeu que estava intrinsicamente ligada à cultura, em suas mais diversas manifestações, sobretudo, à arte cênica. Dois fatos a aproximaram, entre outros, do teatro em definitivo: a participação numa oficina, ministrada por Sérgio Britto, para atores estreantes; e a entrevista que fez, ousadia sem igual, com “O anjo pornográfico”, epíteto pelo qual ficou conhecido nacionalmente o polêmico dramaturgo pernambucano. Sua obra inclui textos cinematográficos, biografia, contos e peças teatrais, essas últimas reunidas hoje em livros – Teatro (In) completo / Volumes I e II.
Vim conhecer Isis Baião pessoalmente quando retornou, depois de muitos anos, a Teresina da sua adolescência e berço natal da sua mãe. Encantado, tratei logo de convidá-la para uma entrevista à Revestrés, uma das melhores já feitas pela nossa revista. Nada mais natural que o lançamento tenha ocorrido, com direito a coquetel e tudo, no Espaço Cultural Trilhos, juntando bastante gente da classe artística da cidade. Indagado por mim, sobre se valeu a pena toda a vida dedicada ao teatro, ela não titubeou: “Nunca me arrependi. Pelo contrário, apesar de toda a luta – porque é uma luta, sim – eu não tive nenhum dia em que achasse que poderia ser outra coisa que não teatróloga.”
Para retribuir tamanho amor e entrega, resta-nos apenas ler com atenção, extraindo as devidas lições, cada sábia resposta dada por Isis Baião, essa mineira de nascença e piauiense de coração.
Que você acha do que disse, certa vez, o polêmico Nelson Rodrigues: “Teatro não tem que ser bombom com licor”?
Concordo com ele. O teatro, como simples divertimento, parece perda de tempo e dinheiro. Sim, porque o teatro é uma arma (que não mata) preciosa para falarmos de sentimentos, de ética, de política, de humanismo, ao representarmos os nossos conflitos, as nossas tragédias e mazelas sociais. E digo mais, acho que o humor, para quem sabe usá-lo, é um grande aliado do dramaturgo. O humorista Leon Eliachar disse certa vez que “fazer rir, é rir do Rei”...
Fazer teatro no Brasil nunca foi tarefa das mais fáceis. Não bastasse, vieram o (des)governo do Bolsonaro e a Covid 19. Como tem sobrevivido a classe nestes tempos de perseguição artística e negacionismo?
Tem sido difícil sobreviver, companheiro. Uns mais, outros menos, dependendo da condição anterior a essas duas tragédias que se abateram sobre nós, a Covid 19 e o Bolsonaro (a ordem não altera a malignidade dos fatores). Têm pessoas passando necessidades mesmo. E me impressiona como esse (des)governo conseguiu reunir, em primeiro e segundo escalão, gente tão incompetente, ignorante e sem pudor para servi-lo (desservindo ao povo), inclusive artistas! É como se um espírito perverso tivesse baixado sobre este país. Mas eu acredito em Deus e sei que a “farra do boi” está no fim...
Quando nasceu em você a ideia de ser dramaturga, área ocupada geralmente por homens?
Amo o teatro desde quase sempre. Quando adolescente e ainda morando em Teresina, mandava buscar livros de peças no Rio. Lia tudo, encantada. Mas não pensava que me tornaria dramaturga. Achava que queria ser atriz e tinha fascínio pelas grandes atrizes. Conheci algumas no Rio, onde fui morar em 66. Já trabalhava na imprensa cariosa quando me formei em Jornalismo, em 70, na PUC/RJ. Em seguida, passei quatro meses em Londres e lá também trabalhei, por acaso!, no Serviço de Rádio para Portugal e América Latina, do COI (Central Office of Information). Na volta, o Sérgio Britto me chamou para fazer uma reportagem em um Laboratório de Teatro, que ele acabara de montar, com outros artistas, a “nata” do teatro carioca. Fui e não saí mais. Continuei a trabalhar em jornalismo, mas estava cada vez mais ligada ao mundo teatral. Por outro lado, comecei a sentir que não era aquele o meu barato. No final do Laboratório, o grupo se dividiu em dois. Um deles era a turma bem jovem, que formaria o Asdrúbal Trouxe o Trombone, sob a direção do Hamilton Vaz Pereira.
Eu estava no outro grupo, dirigido por José Carlos Gondim, que fez uma adaptação da Antígona, de Sófocles, na qual interpretei Ismênia, a irmã da protagonista. Na estreia, amigos e amigas me afiançaram que eu estava ótima!!! Será? Bom, gostei muito da experiência, mas vi que ser atriz não era exatamente o que eu queria. O tempo passou, eu continuava a fazer matérias para jornais e revistas. Um dia, não me lembro se a propósito de uma reportagem, uma atriz, minha amiga, me disse: “Você devia escrever para teatro. Têm poucas mulheres escrevendo. Já pensou nisso?” Não, eu nunca tinha pensado, mas passei a pensar. Resolvi começar pelas adaptações: a primeira, de Ninguém Escreve ao Coronel, de Gabriel Garcia Marques; em seguida Cândido ou o Otimismo, um conto satírico-filosófico, de Voltaire. Depois, começaram os originais, com Maria Manchete Navalhada e Ketchup, tragicomédia, ainda inédita; Instituto Naque de Quedas e Rolamentos, minha estreia no palco. E a vida seguiu, acompanhada de muitos títulos, nenhum deles convencional...
De todas suas peças, qual delas é a filha preferida por ter sido um parto difícil e prazeroso no final da gestação?
Não existe filho(a) preferido(a) para um coração de mãe... Mas é certo que existe um chamego especial com aquele(a) cujo parto foi mais sofrido. É o caso da minha Casa de Penhores. Ela veio ao mundo de maneira totalmente diferente das demais. Eu estava grávida e não sabia. Passei alguns dias numa grande aflição, sentindo as ideias se misturando dentro de mim, sem nenhuma definição. De repente, peguei um bloco de papel e comecei a rascunhar um roteiro. Eram umas 10h da manhã. À medida que escrevia, as cenas apareciam mais nítidas. Fui sendo tomada por uma grande emoção. No final da tarde, o roteiro estava pronto, relaxei e desabei num grande pranto. Acabara de parir um bebê, ainda descarnado, a que dei o nome de Casa de Penhores. Anos depois, ela se tornou a menina dos olhos da família Baião, quando obteve um dos prêmios do concurso 1997 Onassis International Cultural Competitions – Theatrical Plays, em Athenas-Grécia.
Quais nomes despontam hoje na dramaturgia brasileira, incluindo a piauiense, no sentido de renovação e atração de público?
Estou há sete anos no Piauí e por fora do teatro no Rio, que sei debilitado, como o da maioria dos estados, pelos efeitos da pandemia e desse (des)governo do inominável. Prefiro falar da dramaturgia piauiense, que teve e tem dramaturgos nacionalmente conhecidos, como Francisco Pereira da Silva e Benjamin Santos. Cito ainda os colegas consagrados, Aci Campelo e José Afonso de Lima (este, também poeta) e outros, cujos trabalhos me entusiasmaram em estreias diversas. Mas confesso que tenho especial carinho por uma pequena turma que fez a minha Oficina Avançada para Novos Autores, em 2017, realização da Secult. No final, organizamos um mini- festival com a produção da Oficina, em que, cada Novo(a) Autor(a), ocupava uma 5ª feira, no Teatro Torquato Neto. Uma das novas dramaturgas desta turma, a jornalista Samira Ramalho, já atingiu Sampa: ano passado encenou, no Teatro Gazeta de São Paulo, a peça A Ciumenta, em parceria com a atriz do SBT, Renata Brás.
O que motivou você e Terezinha Marçal a escreverem “Mara Rúbia, a Loura Infernal”, biografia da atriz paranaense Osmarina Lameira Colares Cintra?
Pois é, na vida, tudo é história, as coisas acontecem e se encaixam, ou não. Em 84, três atrizes me pediram para escrever um texto sobre as questões da mulher. Aceitei e nos encontrávamos uma vez por semana para uma troca de depoimentos de vida. Virávamos a noite, contando nossas histórias umas para as outras, rindo, chorando. E só a partir de um determinado momento, comecei a escrever os esquetes que iriam compor o espetáculo As Bruxas Estão Soltas. Therezinha Marçal, filha de Mara Rúbia (na época, ainda viva) era uma das atrizes e, nos seus depoimentos, falava muito da sua mãe. Nós todas ficávamos encantadas com as histórias de vida daquela mulher linda, de forte personalidade, carismática e à frente do seu tempo. Montamos As Bruxas numa galeria de arte, bem no coração de Ipanema, e foi um sucesso, mas, quando terminou o contrato com a Petite Galerie, não tivemos dinheiro para alugar um teatro. Com uma grande tristeza, fomos cada uma para um lado (no Rio, é o que acontece quando se desfaz um elenco). Anos depois, reencontro a Therezinha e a fulmino com esta proposta: vamos escrever a biografia da Mara Rúbia? Ela ainda estava muito abalada pela morte da mãe, mas topou. A princípio queria que eu escrevesse todo o livro, mas convencia-a de que, no decorrer da narrativa, era interessante que houvesse pequenos textos dela, contando coisas de Mara, com o olhar e o sentir de filha. Foi incrível. Acho os textos da Thê um dos charmes de Mara Rúbia, a Loura Infernal.
Ao assistir ou ler suas peças, que mensagens/lições ficam no imaginário coletivo?
Realmente, não sei. Cada cabeça, uma sentença, não é? Mas faço o possível para que me entendam. Sei que não distribuo “bombons com licor”, embora faça rir, às vezes, até muito. Dizem que o meu humor está mais para o satírico e o cruel. É verdade. Vejo mais a vida como uma tragicomédia, bem mais do que uma simples comédia. E raramente a vejo de maneira realista. Minha linguagem é essencialmente expressionista. É o que eu acho, mas posso estar errada. É difícil ser crítica de si mesmo...