Por Wellington Soares
Contista, poeta e professor da Universidade Estadual do Piauí (Uespi), o oeirense João Luiz Rocha do Nascimento é Juiz do Trabalho do Tribunal Regional do Trabalho da 22ª Região.
Apaixonado por literatura, J. L. Rocha do Nascimento é Mestre e Dojtor em Direito Público, pela UNISINOS (RS), membro do grupo Confraria Tarântula de Contistas, com o qual assina “Um dedo de Prosa” “Os vencidos”, “Dei pra mal dizer” e mantém a página confrariatarantula.blogspot.com. Integra também o grupo virtual Juízespoet@s, com o qual publicou “Prosa & Verso”, “Pássaro Liberto”, “Tecendo a magia” e “Nossas cidades: corpo e alma”.
Na área jurídica, J.L. Rocha do Nascimento costuma fazer aproximações entre Direito e Literatura. Fruto dessa experiência é sua dissertação de mestrado, publicada em livro, intitulada “Do cumprimento do dever de fundamentar as decisões judiciais: morte dos embargos de declaração, o Macunaíma da dogmática jurídica”.
Em maio de 2019 publicou, pela Scortecci, seu primeiro livro individual de contos intitulado “Um clarão dentro da noite”. Acaba de publicar, também pela Scortecci, o seu segundo livro de contos intitulado “Os pés descalços de Ava Gardner”, com lançamento previsto para o dia 22.05.21.
Segundo João Cabral de Melo Neto, a vida não se resolve com palavras. Pode-se dizer o mesmo pra literatura?
JL Rocha do Nascimento: A vida não se resolve apenas com palavras, e sim com atos concretos, mas a palavra é nossa condição de possibilidade de estar no mundo, não temos acesso direto às coisas, tudo que fazemos na vida e no mundo é mediado pela linguagem, portanto, pela palavra. E se não resolve, pelo menos revolve, como diz o poeta. A literatura como recriação verbal da realidade bem cumpre esse papel, porque tanto o seu objeto como o processo de criação são linguísticos, tem a palavra como principal ferramenta.
O que levou você, depois de integrar algumas obras coletivas, a trilhar uma carreira individual?
JL Rocha do Nascimento: Com o falecimento do Airton Sampaio em 2016, o grupo Tarântula de Contistas meio que se desfez, ficando reduzido a uma dupla (eu e o M de Moura Filho, que o Bezerra JP muito antes já o tínhamos perdido para a esquizofrenia). O Airton era o elemento agregador do grupo, responsável por nos juntar quando passávamos muito tempo separados um dos outros, o que levou ele dizer, numa certa entrevista, que era uma pena que a literatura tivesse perdido dois escritores. Um para a magistratura, meu caso. Outro para a advocacia, o M. de Moura Filho. O direito bem que tentou, mas nunca conseguiu me separar da literatura. Ao contrário, por entender que o direito tem muito o que aprender com a arte literária, faço aproximações entre direito e literatura nas minhas pesquisas acadêmicas, trazendo o direito para dentro da literatura. Fiz isso na minha dissertação de mestrado e na Tese de Doutorado em Direito Público.
Em 2009, com o lançamento do livro “Geração de 1970 no Piauí: contos antológicos”, o Airton conseguiu reunir novamente o grupo e dessa (re)união surgiu em 2012 o livro “Dei pra mal dizer: contos eróticos”. Em 2016 estávamos preparando um novo livro, tendo a velhice como tema central, quando o projeto foi interrompido pela sua morte prematura. Meio que ficamos órfãos e resolvi partir para o voo solo e tenho incentivado o M de Moura Filho a fazer o mesmo. Em 2019 lancei o meu primeiro livro individual de contos (“Um clarão dentro da noite”), que teve uma boa recepção de crítica e de leitores. “Os pés descalços de Ava Gardner”, o segundo livro, deverei lançar no dia 22.05.21. Há um terceiro livro pronto em fase de revisão e a expectativa é publicá-lo até dezembro de 2021. Neste livro, intitulado provisoriamente “Dentro do olho do cão azul”, eu volto a trabalhar o erotismo como tema central. Há outros projetos. Para 2022, a publicação de mais dois livros, um de microcontos (“O livro de João”) e uma novela em construção, cujo título já está definido: “Diagnóstico precoce da farsa”. Em 2023, o projeto é partir para o meu primeiro romance.
Que objetivos buscavam vocês ao criarem o Grupo Tarântula de Contistas e de que forma essa experiência marcou a sua escrita?
JL Rocha do Nascimento: Entre nós havia algo em comum: idades aproximadas, ambiente universitário e a literatura com um sentido ontológico, como um existencial, um modo de ser. Além disso, nos identificávamos muito com o conto, talvez por ter sido este a principal expressão do “boom” literário surgido nos anos setenta e que deu origem a uma nova geração de escritores, contistas, sobretudo. Mas algo nos incomodava. A percepção de que o conto piauiense de até então não refletia esse movimento, ainda estava preso a temáticas regionais, não que esse tema não renda boas narrativas. A questão é outra. É que boa parte das obras não ultrapassavam a simples “contação” de causos, sem qualquer tipo de problematização, tratamento estético ou profundidade, enfim, ninguém se arriscava em penetrar territórios difíceis. O Airton tinha um nome pra isso: regionalismo tacanho. Resolvemos então criar o grupo Tarântula com o objetivo de, com um olhar crítico, propor uma contística centrada na problematização de temas urbanos, universais, mais complexos e provocativos, tudo isso sem descuidar da estética, da qualidade no tratamento dado à palavra escrita. Tais fundamentos são os que ainda movem minha escrita.
Ainda se pode considerar, no dizer do Mário de Andrade, qualquer texto um conto?
JL Rocha do Nascimento: Definir o que é o conto sempre foi uma tarefa difícil e olhe que estamos falando de uma das mais antigas formas de expressão literária. Trata-se de uma dificuldade própria dos textos em prosa, que não encontramos, por exemplo, na poesia. Quando lemos um poema, mesmo que tenha sido escrito em prosa, já temos a pré-compreensão de que se trata de um poema e não de um conto ou crônica.
Na prosa, não só a ficcional, recorrentemente se tem definido o conto a partir da distinção em relação aos demais subgêneros (romance, novela, crônica). E nem se diga que a extensão da narrativa é o critério mais acertado, que esse é o pior deles. Tome-se, por exemplo, “Um copo de cólera” e “Menina a caminho”, de Raduan Nassar. O primeiro tem um pouco mais de 80 páginas e é catalogado como um romance. O segundo é um conto, mas tem mais da metade das páginas do primeiro.
A tarefa se torna mais tormentosa quando o desafio é diferenciar o conto da crônica, pois ambos podem ser tanto curtos como longos. Com um agravante, dado que às vezes as estações se misturam e, nesse caso, dão origem a outra dificuldade: o conto pode não ser pura ficção, no sentido de invenção e a crônica pode revelar algo mais do que um simples retrato do cotidiano. Mas isso de se prender a um enquadramento rigoroso é muito complicado mesmo. Em muitos textos de Jorge Luís Borges, por exemplo, que só escreveu contos, fica difícil dizer onde começa o conto e onde termina o ensaio. Ele mistura tudo propositalmente, mas os chamou de contos, foram lidos como contos e foi nessa condição que se tornaram famosos, isso é o que importa.
Muito provavelmente a razão esteja com J. J. Veiga quando disse que a definição definitiva de conto nunca será encontrada e nem isso tem muita importância porque o conto é uma criação de mais de mil faces, portanto, é indefinível, e assim deverá continuar. Ou com Clarice Lispector ao dizer que era inútil querer enquadrá-la. Simplesmente não dava muito bola para essa classificação de gêneros e subgêneros. Algo parecido já tinha feito Charles Baudelaire que ao publicar Le spleen de Paris (“As melancolias de Paris”), deu ao livro o subtítulo de “pequenos poemas em prosa”. No mesmo sentido, o contista peruano Julio Ramón Ribeyro com o livro “Prosas Apátridas”. Achou que a expressão “apátridas” merecia explicação e justificou pelo fato de que não havia como enquadrar plenamente a obra em nenhum dos gêneros, não pertencia a um território literário próprio. Talvez tenha sido por tudo isso que Mário de Andrade radicalizou ao dizer que “conto é tudo aquilo que o autor chama de conto”. Em certa medida, continua valendo.
Em "fesceninos", contos que abrem o livro Dei pra Mal Dizer, escrito em parceria com Airton Sampaio e M. de Moura Filho, você mostra sua faceta erótica. A recepção foi a mesma dos livros anteriores?
JL Rocha do Nascimento: Embora recorrente, o erotismo ainda é um tema interditado, quase sempre visto com alguma com reserva, sobretudo por quem não sabe fazer distinção entre erotismo e pornografia. Parafraseando o filósofo alemão Hans-Giorg Gadamer, se o leitor quer compreender um texto, tem que deixar que ele diga algo, numa palavra: tem que dar uma chance ao texto. Foi isso que aconteceu. Quem suspendeu os seus pré-juízos e leu o livro, percebeu que o tratamento dado ao tema foi sério, há nele uma preocupação estética. Infelizmente, alguns leitores fizeram apenas juízos morais e não estéticos.
De que maneira Um clarão dentro da noite, seu primeiro livro solo, pode ser tomado como um divisor de águas em sua obra?
JL Rocha do Nascimento: Primeiro, por se tratar do marco inicial de uma virada na carreira. Ontem, as obras coletivas, hoje as obras individuais. Segundo, pelo fato de que o livro reflete o amadurecimento do escritor. É o primeiro de uma série de outros que se seguirão, a começar por “Os pés descalços de Ava Gardner”.
Observa-se entre nossos escritores contemporâneos um anseio grande em pertencer a academias literárias, desejo que não víamos tanto no passado. Como você analisa tal fenômeno e se tem essa pretensão?
JL Rocha do Nascimento: Trata-se de um fenômeno curioso, mas impensável há 40 anos. Faço parte de uma geração de escritores denominada pelo Airton Sampaio de “Geração 70”, cuja consciência foi forjada no meio do movimento estudantil universitário e em um ambiente de resistência e de luta contra a ditadura militar. Nesse cenário, havia uma aversão a tudo que, de algum modo, lembrasse ou se identificasse com o sistema, com o “establischment”. Justo ou não, tínhamos a percepção de que as academias de letras, em especial a ABL, assim como qualquer outro sodalício, com a pompa e a circunstância que lhe são próprias, eram alheias à realidade daquele momento da nossa história e isso meio que nos afastou da ideia de pretender pertencer a uma academia. Nossas referências eram Carlos Drummond de Andrade e Clarice Lispector, que nunca pertenceram à academia, tempo em que jamais poderíamos conceber um Ferreira Gullar envergando o fardão. Quando formamos o Grupo Tarântulas de Contistas na primeira metade dos anos 80, fizemos um pacto: quem ingressasse em alguma academia seria excluído do Grupo.
Claro que olhando pelo retrovisar, penso que, de certa forma, fomos rigorosos demais na crítica, mas há que se considerar o contexto em que a ideia se formou. Hoje não penso mais da mesma forma e reconheço o valor das academias. Quando digo isso, me refiro às instituições sérias e com propósitos definidos e vinculados à literatura, o que não inclui as meramente ornamentais e que, no limite, abrigam membros que nunca escreveram uma linha literária sequer.
Quanto ao anseio dos escritores contemporâneos em entrar para as academias, trata-se de um reflexo da realidade que vivemos hoje. Há uma notória carência de significantes e pertencer a uma academia, não importa qual, pode ser sinal de prestígio, pode render alguns dividendos, enfim serve para aumentar o portfólio do escritor, mesmo porque, não devemos esquecer, vivemos naquele mundo de que nos falava Zygmunt Bauman: fugaz, de tempos líquidos e instantâneos, que privilegia as efetividades quantitativas no lugar das qualitativas. Desse mundo, tudo indica que somos reféns. Quanto mais tentamos nos livrar, mais somos puxados para dentro. Ele, praticamente, nos obriga a sermos felizes, ainda que a felicidade que anunciamos para o mundo inteiro não passe de um autoengano. Quanto a mim, por enquanto continuo imune à picada do aguilhão. Não tenho interesse em ingressar em academia, mesmo porque não tenho méritos para tanto.