A médica Rebecca Gomperts tem dois filhos - uma menina de 4 anos e um menino um ano mais novo. Ao contrário do que poderiam imaginar os integrantes de movimentos próvida, a maternidade só aumentou suas convicções como líder de uma rumorosa campanha pela descriminalização do aborto. Há dez anos, ela criou a ONG Women on Waves (WoW), conhecida por atuar em barcos, navegando em águas internacionais, nas imediações de países que proíbem a indução ao aborto.
A ideia original de fazer campanhas de prevenção à gravidez indesejada e aborto por meio de pílulas em embarcações com bandeira holandesa foi ampliada. "Métodos invasivos podem matar", disse Rebecca à ISTOÉ. "Como prevenção à mortalidade materna, passamos também a orientar as mulheres a realizar abortos seguros por conta própria, fornecendo informações por meio da internet e de linhas telefônicas."
Rebecca, hoje com 43 anos, decidiu-se pelo projeto depois de trabalhar como médica de bordo de um navio do Greenpeace que navegou pela costa da América do Sul nos anos 1980. Impressionada com relatos de abortos clandestinos feitos na região, lançou-se ao mar com o suporte da legislação da Holanda, que permite a interrupção da gravidez nas primeiras semanas e estabelece como legal em águas internacionais ações permitidas em seu território.
Em defesa da causa, ela destaca que em seu país o índice estimado de aborto por ano é de oito para cada mil mulheres entre 15 e 45 anos. "Na América do Sul, onde o procedimento é ilegal, este número sobe para 30", compara. "Abortos inseguros e ilegais são uma das principais causas de mortalidade materna na região." Apesar do interesse de Rebecca pela América do Sul, as ações marítimas da WoW se concentraram até o momento em países europeus com arraigada tradição antiaborto - Irlanda, Polônia, Portugal e Espanha.
Começada em 2004, a campanha de Portugal incluiu o uso de força, com o bloqueio do barco da ONG por dois navios de guerra, para impedir que ele entrasse em águas territoriais portuguesas. Uma das estratégias da organização é atracar num porto previamente estabelecido e nele embarcar as mulheres que desejarem fazer o procedimento abortivo em alto-mar.
Por causa do bloqueio bélico ao navio, que levava quatro médicos e três enfermeiras, Portugal foi condenado em fevereiro deste ano a pagar indenização de dois mil euros às associações que haviam convocado Rebecca ao país. Ao comentar a sentença do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, o ex-ministro da Defesa Paulo Portas ressaltou que a medida não fora relacionada a "qualquer opinião pessoal", mas "com a proteção da legalidade portuguesa vigente à época". Quase três anos depois da primeira ação local da WoW, em fevereiro de 2007, a legislação portuguesa mudou devido ao referendo que legalizou o aborto no país
No último outono europeu, a médica e adeptos de sua causa enfrentaram problema similar ao de Portugal quando atracaram um veleiro em Valência, na Espanha, onde cerca de 500 pessoas aguardavam em terra sua chegada. Entre elas havia ativistas de movimentos pró-vida, que preferem chamar a embarcação usada pela WoW de "barco da morte".
Lanchas das autoridades portuárias tentaram impedir a atracação, mas Rebecca subiu na rebocadora que tiraria o veleiro do cais e cortou a corda que unia as duas embarcações. O veleiro atracado em meio à polêmica na Espanha foi uma das diversas embarcações usadas pela WoW, que costuma navegar em barcos fretados por organizações de mulheres dos países visitantes.
O mais conhecido deles, o Aurora, abrigou a campanha em seus primeiros anos, mas a ONG jamais conseguiu concretizar o plano de comprar o próprio navio. Outro revés da WoW aconteceu há dois meses, quando a Holanda mudou a legislação que permitia a prática dos chamados abortos farmacêuticos - por meio de pílulas - em clínicas flutuantes. "Estamos questionando na Justiça a nova regulamentação para que as próximas campanhas de navegação estejam protegidas pela lei", garante Rebecca.
Com a capacidade marítima temporariamente suspensa, a ONG passou a concentrar suas atividades em dois outros meios: serviços de informação pelo telefone e pela internet. A exemplo de Portugal, que tem uma "hot line" desde 2004, a WoW instalou em junho linhas telefônicas específicas para atuar no Chile e no Equador. No mês passado, o serviço se estendeu para a Argentina.
Não há previsão para a atuação do grupo no Brasil, mas a versão em português do site da WoW traz um alerta sobre golpistas que, fazendo-se passar pela ONG, colocaram à venda no país o remédio Cytotec, que pode provocar o aborto como efeito colateral. "Eles geralmente não enviam nada ou despacham um medicamento que funciona como o analgésico paracetamol", conta Rebecca. "Na prática, abusam de mulheres num momento em que elas estão muito vulneráveis."
No site da organização - que tem versões em inglês, holandês, francês, polonês, espanhol e português -, pessoas de todo o mundo podem até obter medicamentos que Rebecca classifica como seguros para interromper uma gravidez nas primeiras semanas. "A legalização é importante, mas o aborto farmacêutico permite que as mulheres retomem a condução da vida em suas próprias mãos, independentemente da disponibilidade ou boa vontade dos médicos", defende Rebecca.
Um dos remédios, no entanto, só tem comercialização permitida em 40 países, justamente aqueles que permitem o aborto. Assim como precisa enfrentar a Justiça para continuar a atuar em embarcações, a médica holandesa certamente terá novas batalhas judiciais pela frente, desta vez por causa da distribuição de medicamentos.