"Eu passo a vida recordando/de tudo quanto aí deixei/ Cachoeiro, Cachoeiro/vim ao Rio de Janeiro/pra voltar e não voltei."
A última vez em que Roberto Carlos cantou esses versos de "Meu Pequeno Cachoeiro", do compositor Raul Sampaio, para o público de sua cidade natal, foi no ano de 1995. Acompanhado pelo coro de uma plateia que o seguiu segurando velas (quem quiser ver no YouTube busque por "roberto carlos", "último show" e "itapemirim"), ouviu, na sequência, um exaltado "Parabéns a Você".
Era dia 19 de abril, aniversário do Rei. Hoje, 14 anos depois, Roberto sobe ao mesmo palco, do estádio Sumaré, em Cachoeiro de Itapemirim (ES), às 20h, para comemorar seu aniversário de 68 anos e dar início à turnê que celebra os 50 anos de sua carreira --segundo interpretação do próprio artista.
Como tudo que diz respeito ao cantor é envolto em mistérios e lendas, há quem diga que ele tem visitado a cidade esporadicamente nesse período, escondido ou disfarçado, para rever parentes, amigos ou a casa em que nasceu.
A Folha visitou alguns dos lugares que marcaram a infância e a adolescência de Roberto e recolheu relatos sobre a curiosa relação entre a cidade de hoje com o mito nascido lá naquele distante 1941.
Rogério Franzotti tem 67 anos e foi colega de turma do cantor em 1955, quando ambos frequentavam o Liceu Muniz Freire, uma escola estadual. Ele conta que o músico era um menino muito alegre e brincalhão. E que, apesar da deficiência física, não deixava de participar do futebol no campinho da escola.
Na época, Roberto ainda usava muletas, devido ao acidente ferroviário que fez com que tivesse de amputar parte da perna aos 6 anos de idade. Para participar dos jogos no campinho do liceu, o cantor jogava no gol, pois ali não precisava se mexer muito. "Ele não estava nem aí para o problema físico. Levava uma vida normal e estava sempre fazendo piadas e inventando apelidos pra todo mundo", diz Franzotti.
Rádio
O edifício da escola é tombado, mas encontra-se em mau estado de preservação. Ali, Roberto se destacava especialmente nas aulas de canto e desenho. Então com 14 anos, já era conhecido como um cantor mirim talentoso. Afinal, desde 1950, ele brilhava nas manhãs de domingo no programa infantil ao vivo da rádio local, a ZYL-9.
Os colegas de liceu o viam cantar, e alguns deles também participavam. "Ir à rádio era um programa para nós. Mas nenhum garoto cantava como ele. Foi excepcional desde sempre", diz o colega.
Apesar de cultivar essas lembranças, e de fazer delas seu ofício --trabalha como guia turístico de Cachoeiro, especialista na trajetória de Roberto Carlos-- Franzotti diz que não conversa com o ex-colega desde que deixaram a escola. Ainda assim, tornou-se referência na cidade como uma espécie de "companheiro de turma oficial" do artista.
Ele acrescenta que o fato de o astro não vir oficialmente com mais frequência à cidade natal é culpa do desinteresse das novas gerações. "É como diz o ditado: em casa de ferreiro, espeto de pau. Mas estamos fazendo um trabalho de sensibilização com os jovens para que se identifiquem mais com Roberto."
Se a estratégia funcionar, confia, esperançoso, que o cantor se sentirá mais à vontade, virá mais vezes e, quem sabe, reatará laços com antigos colegas e conhecidos, como ele.
Eficiente e elétrico, Franzotti anda pelas ruas e dá explicações sobre cada detalhe. "Cachoeiro não é uma cidade bonita, mas tem várias pequenas belezas." É ele quem nos leva à Casa de Cultura Roberto Carlos, pequeno museu montado na ex-residência da família do ídolo. Na última casa da rua João de Deus Madureira, perto do centro comercial da cidade, Roberto morou até a adolescência com o pai, Robertino Braga, relojoeiro; a mãe, Laura Moreira Braga, costureira; e os irmãos Norma, Carlos Alberto e Lauro Roberto.
O acervo não é grande coisa. Quase não há objetos que pertenceram ao músico. Existem coisas que foram doadas por fãs e particulares. A extinta rádio de Cachoeiro, por exemplo, mandou o piano que acompanhou Roberto nos programas dominicais, além de um gravador da época. Ambos estão no quarto em que ele nasceu.
O mais interessante é a restauração da casa como era na época. Encostada numa ladeira, de cômodos pequenos e arejados, foi toda repintada de azul, sua cor original.
Dois reis
Antes de ir para o Liceu, no final dos anos 40, Roberto Carlos estudou num colégio particular e religioso, o Jesus Cristo Rei. Entre suas primeiras professoras estava a irmã Fausta de Jesus, 86, de quem ficou muito próximo. Foi ela quem lhe deu, em 1968, o famoso medalhão que usou por muito tempo em shows.
A freira participou, no começo desta semana, da homenagem organizada pela escola. Nela, mais de mil alunos caminharam até a o centro de Cachoeiro, seguindo um pequeno trio elétrico que executou músicas religiosas e do repertório do cantor.
Conhecido como um colégio rigoroso e bastante católico, o Cristo Rei não cultua apenas Jesus Cristo. Na entrada da sala de aula frequentada por Roberto, está uma placa, que indica que ali estudou o "Rei Roberto Carlos". Nos corredores, cartazes das crianças relatam sua biografia com fotos e textos recortados de revistas, jornais e enciclopédias.
Segundo relatos, Roberto Carlos costumava se sentar perto da porta, para poder entrar e sair com mais facilidade. E também que era um menino levado, que curtia jogar futebol e desenhar carros.