Filho de um casal de professores de classe média baixa, Limbert e Carola, que trabalham entre 14 e 16 horas por dia e cujos salários somados não atingem os US$ 400 (cerca de R$ 800), Kevin Beltrán, 14, vivenciou dias de euforia na semana que passou.
O adolescente, segundo o seu melhor amigo, Emanuel, festejava que pela primeira vez iria assistir ao vivo uma partida de seu time, o San José, em Oruro, e de quebra veria a equipe campeã do Mundial do Japão, o Corinthians.
"Eu não teria condições financeiras para levá-lo para assistir a Copa no Brasil, mesmo sendo aqui do lado. O que seria a segunda melhor opção? Deixá-lo assistir o Corinthians", lembra Limbert, que recebeu a reportagem da Folha em casa. "E por quê não? Pelo que ele era, merecia."
Era Kevin, no dia a dia, que tomava conta dos irmãos - Jhojan Cristhian, 9, Alexandra, 8, e Matías, 2, enquanto os pais trabalhavam. Foi ele quem lhes ensinou a brincar, dançar, e ajudava com as lições de casa. O caçula o chamava de "Papa" ("papai").
"Os pais trabalham o dia todo para oferecer-lhes vida melhor, daí Kevin ajudá-los a cuidar dos irmãos", diz Mary Encinas, ex-professora de Kevin, que cursava o terceiro ano do secundário, no colégio particular Edmundo Bojanowski. Lá, os pais, professores de história, lecionam.
"Ele me surpreendia. Tinha dias em que eu chegava e ele e os irmãos haviam arrumado a casa. Houve uma vez em que ele disse que eu estava trabalhando muito, pediu que ensinasse a fazer talharim e ele fez o almoço", conta, com orgulho, Carola.
Tratava-se de uma via de duas mãos. O pai, reconhecendo o sacrifício, premiava o filho da forma que podia.
Segundo parentes, Limbert deixava de comprar roupas para ele mesmo. Assim, Kevin poderia se vestir melhor.
À reportagem, atendeu usando o seu uniforme.
"Às vezes percebia que ficava chateado quando via os outros com algo que não podia ter. Mas ele nunca pedia. Tem coisas que até meus filhos menores reclamavam, como um quarto próprio para ter mais privacidade. Mas ele, nunca", diz, emocionado, olhos mareados, Limbert.
Os presentes surgiam à medida que o orçamento permitia, e o pouco dinheiro que recebia, dividia com os irmãos para que comprassem doces.
Passeios, como o da exposição dos dinossauros, cujos preços não eram para todo mundo (cerca R$ 16), só com promoções de final de temporada, quando o ingresso dá o direito ao acompanhante.
Apesar das boas notas, que em sua escola vão de 0 a 7 (ver boletim ao lado), Kevin não sacrificava a vida social. Era o líder da classe, praticava esportes, como o futebol -era o goleiro-, natação, basquete e kung fu, tocava zamponha (gaita de fole italiana) e guitarra, e era mestre de cerimônias em eventos no colégio.
Kevin tinha planos para a segunda que se seguiu à tragédia: Havia feito uma música, que apresentaria para Eliana, colega de classe por quem estava apaixonado. Havia mostrado a canção, que falava sobre seu amor, para a amiga July Zambrano, que contou a Eliana. A "musa" lamentou: "Não deu tempo...".
Ao lado dela, Mary enumerava as atividades de Kevin.
"Ele fazia rap, dança, da moderna à típica, kung fu e queria aprender caratê. Não sei de onde saia sua energia."
A mãe de Kevin, mostra com orgulho os desenhos e maquetes que ele fazia com materiais reciclados, e que à primeira vista parecem aquelas feitas industrialmente.
"Esperava muito desse [Kevin]", comenta, Limbert, 40, os olhos fitando o horizonte.
Tudo mudou na noite de quarta. Limbert recebeu um telefonema do primo que acompanhava Kevin a Oruro.
Contou ao tio que seu filho havia morrido depois de ser atingido pelo sinalizador disparado por um corintiano.
Limbert sentiu as pernas enfraquecerem, caiu no chão.
Foi Ludvi, tio de Kevin, quem conduziu de carro o pai e a mãe a Oruro. Viagem de quatro a cinco horas, em estrada mal iluminada, à beira de uma perigosa ribanceira. "Só paramos para abastecer, e essa espera pareceu uma eternidade...", relata Ludvi.
"Durante todo o trajeto, pensava que poderia ser um engano, que chegaríamos e não seria ele. Ou que fosse só um machucado no olho... Me sentia, e sinto, culpado por tê-lo deixado ir", diz Limbert.
Quando a TV confirmou sua morte, na casa, todos choraram. "Burro, burro. Por que você teve que ir?", repetia Jhojan, como se desse uma bronca no irmão mais velho.
Ao chegar a Oruro, lá pelas três da madrugada, pai, mãe e tio não puderam entrar no necrotério. A polícia o havia selado. Mas ouviram que poderiam ver o corpo de Kevin, às 8h, brevemente, antes de ser levado à autópsia. Viram o corpo com o projétil encaixado onde era seu olho, o lado direito do rosto destruído.
Os pais não acreditavam. Tentaram, em vão, aquecer o corpo do filho, já rígido. O abraçavam, sem se importar com o vermelho da camisa, de sangue. O mesmo sangue que foram ao estádio limpar -não queriam que a tragédia dele fosse exposta na mídia.
"Não sei se essa é uma batalha que vou ganhar", diz Limbert -alusão à atuação do governo brasileiro no caso.
"O rapaz apresentado como culpado [pela Gaviões]. Não parece algo ensaiado?"
Na escola de Kevin -um colégio católico-, a irmã Rosário Cárdenas, emocionada, perguntou: "Diga-me, vai haver Justiça? Seja sincero!"
Mas foi a mãe de Kevin, Carola, sua melhor amiga, segundo Limbert, que melhor definiu o episódio: "Eles roubaram o futuro de Kevin..."