Garoto faz apelo nas redes sociais para ser jogador profissional

O convocado foi Gustavo Gomes, tatuador popular entre jogadores de futebol

| Arquivo Pessoal
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A vida de Kaick da Silva, de 13 anos recém-completos, transformou-se em uma série de desventuras há menos de dois meses. Candidato a volante, o garoto quer chegar ao futebol profissional, mas ficou muito perto de abandonar o sonho depois da morte de um ente querido, do desemprego dos pais e da dificuldade da família até para conseguir comida.

- O futebol é tudo. Eu jogo futebol porque eu amo. Já pensei em desistir, quando minha avó morreu. Mas pensei nos dias em que ela falava para eu não desistir, que seria um jogador de futebol e iria aparecer na TV. O futebol é a minha vida - conta Kaick.

Sem trabalho, a única renda da casa passou a ser o bolsa família. A mãe, Roberta, é manicure e viu o movimento cair. O pai, o segurança Allan, está desempregado há dois anos e financiou um carro para ser motorista de aplicativo, mas o automóvel foi roubado e o dinheiro do seguro foi todo para pagar a financiadora. Juntando recursos para as necessidades básicas, o futebol ficou em segundo plano.

- Ele precisar de dinheiro para treinar e eu não ter... Já aconteceu de a gente não ter nada dentro de casa para comer. O meu filho menor e o Kaick falavam: "pai, quero um leite, um pão". Para não chorar na frente deles, saía de perto. É muito triste não poder dar um leite e um pão para o seu filho - desabafou Allan.

O jogo começou a virar em novembro, com uma ajuda inesperada. Perdendo jogos e treinos pela falta de dinheiro, o garoto decidiu recorrer a um desconhecido nas redes sociais. O convocado foi Gustavo Gomes, tatuador popular entre jogadores de futebol do Rio. Depois de ver o profissional com algumas estrelas, o garoto fez um apelo. E foi atendido. Além de ajudar com passagens de ônibus, Gustavo empregou a mãe de Kaick, que passou a trabalhar no estúdio de tatuagem em São João de Meriti.

- Quando eu liguei, o pai dele que atendeu. Falei que era o Gustavo Tattoo, que o filho tinha pedido um RioCard. Disse para ele contar ao filho que o problema acabou, que vou dar o RioCard para ele todo mês. Ele agradeceu e me mandou mensagem quando chegou em casa, fez o vídeo em que o Kaick agradeceu muito, chorando, por causa de um RioCard. Uma criança de 12 anos poderia pedir uma chuteira, uma camisa de algum amigo meu que é jogador de futebol, pedir algum presente, uma bola. Me comoveu porque ele pediu um RioCard. Como eu também sou pai, não pude negar.

- A gente só tem a agradecer, porque Deus colocou as pessoas certas no nosso caminho. As pessoas certas na hora certa. Creio que vai ficar tudo bem daqui para frente - comemorou Roberta.

"Quero ajudar a minha família"

Com categoria especial no pé direito, o jovem volante já passou por Botafogo e Fluminense, mas foi dispensado depois da crise financeira da família e da morte da avó paterna. Na época, o principal motivo era a evolução física aquém do esperado.

Para driblar a concorrência implacável entre os inúmeros garotos, Kaick ganhou um auxílio importante. Por meio de Gustavo, o menino começou a receber presentes de jogadores, como chuteiras. O lateral Mascarenhas, do Fluminense, e o atacante Felipe Vizeu, do Grêmio, são dois que ajudaram. Um incentivo de quem já alcançou o mesmo objetivo que o menino de 13 anos tanto deseja.

- Para mim, qualquer clube está bom. A primeira coisa que eu quero fazer é, com o meu primeiro salário, ajudar a minha mãe, o meu pai, a minha família. Tenho que dar valor a eles porque sempre estão me apoiando - completou o garoto, que quer viver do futebol.

- O Kaick é um jogador comprometido dentro de campo. Às vezes a gente precisa pedir até um pouco de calma, porque tem muita vontade e muita raça. Apesar da estrutura física não ser tão forte, consegue desenvolver bem e tem amadurecido. Tem algumas dificuldades por faltar alguns treinos, mas está evoluindo bem - elogiou o técnico do sub-13 do Olaria, Tainan Júnior.

No fim de dezembro, Kaick ganhou a Copa União com o Olaria e continua cheio de sonhos. Dono da camisa 7, ele garante que tem "pique Felipe Melo", mas se espelha mesmo no alemão Toni Kroos. Dias antes da decisão, o menino recebeu um recado especial de Felipe Vizeu. O contato aconteceu por vídeo. O atacante, revelado pelo Flamengo, ainda estava na Itália a serviço da Udinese.

- Vai para dentro dos caras, te desejo boa sorte. É como um jogo normal, não pensa que vai ser diferente por ser final. Fica tranquilo, só de você estar aí você já é um vencedor. Se não ganhar em alguma final, não se preocupe, você já é um vencedor - disse Vizeu.

Milagre que contraria a regra

A história de Kaick, que já é surpreendente, se torna ainda mais incrível diante da realidade brasileira e os mais de 12 milhões de desempregados no país. Os efeitos negativos também são vistos no esporte, que antes de salvação financeira para alguns poucos felizardos é ferramenta para educar e preservar a saúde.

Na teoria, o acesso ao esporte é um direito garantido pela Constituição. A realidade é que a prática desportiva é sustentada prioritariamente pelas próprias famílias. O sedentarismo atinge quase metade da população, com incidência maior sobre os mais pobres.

Os dados são do Diagnóstico Nacional do Esporte, divulgado em 2014 pelo governo federal. Segundo o estudo, as famílias brasileiras desembolsaram, somente em 2013, mais de R$ 43 bilhões para ter direito à prática esportiva. No mesmo período, o poder público gastou menos de R$ 2 bilhões (isso em meio aos preparativos para Copa do Mundo e Olimpíadas). A iniciativa privada, o triplo disso.

No último dia 28, o ex-presidente da República Michel Temer aumentou a desilusão em um dos últimos decretos no comando do país: diminuiu em quase 50% o alcance do Bolsa Atleta, que contou com R$ 80 milhões em 2018. Segundo o próprio governo, os mais afetados serão os atletas de base, em formação. Mais um golpe duro em quem trabalha com esporte no Brasil.

- Acredito que é um problema regional (o abandono da prática do esporte), ocorre muito. A maioria das crianças vem de comunidades e tem essa dificuldade. A gente tenta entender e tenta ajudar, o próprio clube (Olaria) tenta dar uma ajuda. E tentamos seguir dessa forma - lamentou o técnico Tainan.

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