Um pote gigante de whey protein tem lugar cativo numa sala da administração de um hospital público da Ilha do Governador. É ali que a enfermeira Kirley Suenia Miranda coordena uma equipe de quase 60 pessoas das áreas de áreas de segurança, rouparia, manutenção, limpeza e engenharia clínica. Entre um atendimento e outro, a moça de 27 anos checa os e-mails, prepara relatórios e bebe a mistura de água com o suplemento alimentar à base de proteína. O uso do pó feito a partir do soro do leite faz parte da dieta rigorosíssima que Kirley segue há dois anos e que ajudou a transformar o seu corpo, estrategicamente escondido por um jaleco branco no trabalho.
— Nunca estive fora de forma, mas sempre gostei de comer muito. Ninguém acreditava que pudesse virar atleta — conta a loura, pós-graduada em Controle de Infecção e tricampeã brasileira de fisiculturismo.
Ao contrário do que se imagina de uma fisiculturista, Kirley, que recebe acompanhamento nutricional personalizado, não tem músculos daqueles que saltam do corpo e chegam a causar espanto. Também não tem traços brutos, desproporcionais ou masculinizados, nem voz rouca, típica de quem fez uso de anabolizantes.
De perto, a enfermeira mais parece aquela garota que bate ponto todos os dias na academia e lá exibe pernões, bundão, muitas curvas e saúde de sobra. A categoria escolhida por Kirley, a Wellness, só existe no Brasil, mas anda fazendo tanto sucesso que começa a entrar em alguns campeonatos internacionais. A ideia é tentar seguir o caminho da bem-sucedida divisão Biquíni.
— É tanta mulher boa que tivemos que dividir a Wellness em quatro alturas diferentes (até 1,58cm, 1,63m, 1,67m e acima de 1,67m), e ainda incluir a master, com participantes acima de 30 anos — explica Gustavo Costa, presidente da Federação de Fisiculturismo e Fitness do Estado do Rio de Janeiro.
Com a popularização das garotas Wellness, o fisiculturismo feminino começa a viver uma nova fase, cercada de menos preconceito, mais campeonatos e um público crescente. Se alguns anos atrás um evento grande do gênero não reunia nem cem pessoas, hoje atrai milhares de curiosos. Os patrocinadores também começam a dar o ar da graça, mas costumam oferecer apenas uma permuta com os seus produtos (geralmente vitaminas e roupas de ginástica).
No caso das meninas, a maioria é atraída para a modalidade por duas razões: o desejo de ter o “corpo perfeito” e o sonho de ser famosa. Gastam mais do que recebem. Nem sempre, os prêmios são em dinheiro. Muitas vezes, mesmo as vencedoras voltam para casa depois dos eventos com, no máximo, uma sacola cheia de brindes.
A ex-atleta de Bodyfitness Amanda Capella é testemunha da mudança. Depois de oito anos, ela resolveu trocar de categoria e voltou às competições. No evento que participou em março com outras 15 meninas, foi eleita a campeã master estreante. Personal trainer, Amanda também auxilia na preparação física de atletas de MMA na academia Upper, no Flamengo, onde treinam lutadores do UFC, como José Aldo, Renan Barão e Junior Cigano. Para ela, entrar em forma dessa vez foi bem mais fácil.
— A dieta não é tão agressiva. O corpo deve ser torneado, mas não precisei ficar fortona como era antes — diz Amanda, de 31 anos, que também é árbitra desde 2008. — Tem que ter carisma, beleza e cabelos bem cuidados. Quando subo no palco, consigo identificar na hora quem são as minhas maiores adversárias.
A preparação exige muita disciplina e, definitivamente, não é para qualquer uma. Consumir suco verde e tapioca, sucesso entre it-girls famosas na internet como Carol Buffara, é motivo de piada entre as marombadas. A alimentação delas se resume a dúzias de claras de ovos, muita batata-doce e quilos de frango, ingeridos a cada três horas.
— É importante que um profissional da nutrição faça o acompanhamento. Se a dieta for muito restrita e seguir por um período longo, sem variedade de frutas e grãos, por exemplo, ela pode provocar deficiências vitamínicas e minerais — alerta Gabriel Alvarenga, responsável pelo setor de nutrição da Bodytech.
Para tentar variar o invariável, Aline Machado, cinco meses de carreira e seis competições no currículo, abusa da criatividade. Sem adicionar sal ou qualquer tempero ao que consome, ela prepara frango grelhado com batata amassada, frango no forno com batata cozida, torta de batata com frango.
Quando a vontade de comer doce é incontrolável, Aline, que sonha em ter sua própria marca fitness, bate uma banana congelada com whey protein e um punhadinho de aveia.
— Fica uma delícia, igualzinho a um sorvete — garante a também estudante de Nutrição, que admite correr para o rodízio de massas assim que sai das competições.
Com o físico longilíneo e o baixíssimo percentual de gordura corporal das atletas, o Brasil se destaca ainda com as meninas da categoria Biquíni, reconhecida pela Federação Internacional de Bodybuilders (IFBB) desde 2010. Mais do que a (leve) definição do corpo, nessa divisão os juízes observam como as candidatas desfilam no palco durante os 30 segundos que são de direito, avaliam como (e se) demonstram simpatia e, principalmente, prestam muita atenção nas poses previstas no roteiro do evento. Numa delas, as pernas ficam levemente abertas, a bunda vai para trás e o peito para frente. Uma mão permanece na cintura enquanto a outra fica um pouco distante do corpo, e o sorriso não sai do rosto em nenhum momento.
Estudante do quarto período de Engenharia Civil, Juliana Dantas, de 20 anos e 1,65m de altura, nem lembra mais quantas vezes ensaiou na frente do espelho para memorizar cada pose. Assistia a inúmeros vídeos das mais famosas atletas no YouTube e pedia para a mãe, a corretora de seguros Maria de Lourdes Dantas, filmar sua evolução.
Juliana é novata, mas tem pose e ares de campeã. Começou a treinar pesado em março depois de ver de perto a modelo fitness Bella Falconi, que ficou conhecida como a “musa do abdômen trincado”. Emagreceu nove quilos em quatro semanas fazendo muita musculação e duas séries de exercícios aeróbicos por dia. Tanto esforço rendeu os títulos de campeã estadual, brasileira e uma vaga no Mundial, que acontece em outubro no Canadá.
A moradora de São Gonçalo é uma das poucas que não têm próteses de silicone nos seios. A parte de cima de seu biquíni cheio de brilhos ganhou enchimento. Além disso, chumaços e mais chumaços de algodão ajudam a dar volume à comissão de frente.
— É como se tudo isso fosse um sonho — diz Juliana, enquanto devora pequenos pedaços de frango que leva numa marmita, no intervalo da sessão de fotos. — O problema é ficar sem chocolate. Tem noite que eu sonho com aquelas barras gigantes, acredita?
Ariana Klein, 30 anos e 300ml de silicone nos seios, largou o emprego de gerente administrativa de uma joalheira em São Conrado, onde mora, para passar suas manhãs e tardes na academia. Há dois anos, participa de todos os eventos que aparecem pela frente, ainda que para isso tenha que se deslocar para outras cidades, de carro ou de avião. O marido, um empresário do ramo de imóveis, é seu grande patrocinador.
— Se não fosse a ajuda dele, eu não conseguiria. É muito despesa que a gente tem — desabafa Ariana, que pagou R$ 900 nas duas peças cor-de-rosa que usa na foto da página ao lado.
Tanto na categoria Biquíni quanto na Wellness, a roupa de trabalho é elemento importantíssimo para um bom resultado. E mais uma despesa, em meio aos altos valores que precisam ser investidos na “carreira” (veja quadro acima). Enquanto na primeira, de acordo com as regras, a peça deve cobrir dois terços do bumbum, na segunda o modelo é quase um fio dental. De olho no mercado, uma costureira de São Paulo se especializou em produzir biquínis para eventos fitness. Virou a principal fornecedora do país. Os preços podem variar entre R$ 300 e R$ 1 mil, dependendo da quantidade de pedras, lantejoulas e outros apliques que a cliente desejar.
Na competição, acessórios como pulseiras, anéis e brincos são liberados, e as moças sempre escolhem os mais brilhosos. Os sapatos têm no máximo 12 centímetros de salto e não podem ter amarrações nas pernas. Tatuagens são permitidas, desde que não dificultem a avaliação do corpo de jurados.
Corpo com aspecto bronzeado é obrigatório nas apresentações. O problema é que apenas duas tintas (e não bronzeadores) são liberadas para uso pela federação brasileira. Aplicadas com pincel ou esponja, custam entre R$ 150 e R$ 180, e demoram até três horas para secar, tempo que pode ser acelerado com um secador de cabelo. Para evitar borrões, a maioria das atletas prefere contratar um “pintor de corpos”. São mais R$ 150 por 20 minutos de serviço.
— É uma profissão cara e difícil — afirma a paulista Nathalia Melo, de 30 anos, primeira brasileira a ganhar o Olympia, espécie de Copa do Mundo dos fortões, que hoje mora na Irlanda do Norte. — Chega a ser uma jornada solitária. São muitas horas de treino, alimentação regrada, e as pessoas questionando: “Mas não pode comer um pedacinho de pizza? Nem uma taça de vinho?”
O fisiculturismo não é unanimidade nem entre as competidoras. Bicampeã mundial de bodyboard em 1996 e 1997, e mãe de dois filhos, Dani Freitas escolheu uma das categorias pesadas para sua estreia, em 2012. Os treinos foram intensos, os músculos brotaram, o cabelo dourado do sol ficou escuro, mas a carreira durou pouco.
— Parei e decidi não treinar mais nenhuma aluna para esse tipo de competição. Não gostei da minha experiência. Foram anos em que investi uma verba grande para no final me dar conta de que essa não passa de uma indústria ultrassuperficial e fake — alfineta a hoje personal trainer, que mora no Havaí, de onde dá consultoria para atletas do mundo inteiro.