?Nós que passamos apressados pelas ruas da cidade merecemos ler as letras ou palavras de Gentileza?. Este verso da canção ?Gentileza?, de Marisa Monte, faz referência as frases pintadas pelo poeta Gentileza no Rio de Janeiro, mas acaba por contemplar todos os lugares que têm um versinho ou frase de efeito. Em Teresina cada vez mais vemos nos muros estas frases que chamam a atenção do transeunte. Ás vezes não tão gentis, muitos proibidos, estes versos se espalham e trazem uma nova cara e um novo olhar para o espaço urbano.
Em vários pontos da capital é possível encontrar manifestações pictóricas que em muitos casos expressam forte sensibilidade. Mesmo as com palavrões, que trazem impacto e geram algum tipo de reflexão. É difícil mapear uma área onde elas se concentram, mas podemos arriscar que elas são mais comuns nas áreas centrais e em universidades é bem comum.
?Preciso de arte! Estou falando pelas paredes!? É uma que se encontra nos brancos muros da Universidade Federal do Piauí. Contraditoriamente ou não esta frase se encontra próximo às salas do Departamento de Artes Visuais.
Frases carregadas de sensibilidade, muitas vezes imbuídas de um teor ácido que se traduz numa forma de protesto.
Em algumas esse viés de reivindicação é mais explícito, como na frase ?Machismo Mata!? Para o doutor em Antropologia Fabiano Gontijo, esta maneira de se expressar são formas de comunicação: ?representações portadoras de sentido que permitem leituras diversas e impressões relativizadoras?. Ele observa que em alguns contextos estas intervenções podem ser vazias e desnecessárias.
?Há inscrições que me parecem deslocadas - quando, por exemplo, feitas em locais como igrejas coloniais recém-reformadas, prédios públicos de grande valor histórico e artístico, árvores... Logo, eu poderia dizer que essas ?pichações? beirariam a criminalidade, pelo suporte usado para a inscrição. Não seriam, para mim, atos criminosos? Acho que as inscrições são formas artísticas que se tornam manifestações ou manifestos, em quase todos os casos?, pondera.
Diversas são as razões e significados de cada uma destas frases e versos que estão apregoadas nos muros teresinenses. Mas é nítido que o ponto comum entre elas é o caráter subversivo. É dizer, são frases que em sua maioria provavelmente não foram previamente autorizadas. E pelo teor delas é muito provável que se solicitada, a permissão, não seria concedida e se permitida, talvez alterasse a essência do processo.
Sobre a relação entre liberdade e repressão, Fabiano lança um questionamento: ?Quem define o que é liberdade e o que é repressão? Quem define são aqueles que, a meu ver, estão no topo das hierarquias de instauração e imposição de arbitrários culturais ou dos arbitrários sobre os quais se assentará seu poder de dominação?, instiga.
Muros e museus: onde está a arte
A arte está em qualquer parte e os museus são importantes por canalizarem a produção artística de tempos e espaços variados. No entanto, não são redutos exclusivos, podendo existir onde quer que haja manifestação de sensibilidade. O professor doutor chefe do Departamento de Música e Artes Visuais, Odailton Aragão, também avalia que o que está no muro é uma linguagem que serve para se comunicar.
?A manifestação pictórica, seja na forma de letras, ou através de imagens, é uma forma de linguagem, uma forma de comunicação, todas querem dizer algo, seja grito de rebeldia, de crítica ou mesmo uma estética, sempre nos chama atenção?, explica.
O professor considera que poesia nos muros não são pichações comuns. ?Acho que frases poéticas não pode ser consideradas pichação, claro que deve também ter uma estética, algo que agrade, além do tema, aos passantes.
Letras que parecem rabiscos, códigos escritos, só interpretado por um grupo e que os passantes olham e acham que só poluem visualmente, só pode ser considerado vandalismo?, afirma.
Ele examina que através dos muros é possível ter mais visibilidade.?Os artistas que produzem esse tipo de arte não estão preocupados com o suporte e sim em se manifestar, mostrar a sua impressão do mundo ao maior número de pessoas possível. A relação com outras mídias está no poder de comunicação, o grafite vai comunicar a um número imenso de pessoas pois está exposto na rua, em um espaço que está aberto a qualquer um e a qualquer hora?, pontua Odailton.
Teresina frita e a poesia grita: visões da arte
Nossa quente cidade está fervilhando de ideias e de grupos culturais que estão realizando articulação em torno de intervenções urbanas poéticas. Vários coletivos refletem diferentes maneiras de como se relacionar com o espaço público. Dentre eles Abacateiro, + Movimento, Diagonal, Cabeça de Chave dentre outros. Há também quem paute o ações individuais que preservem o anonimato, realçando a poesia com o mistério a cerca do autor.
Guga Carvalho, artista visual curador e articulador cultural, já trabalhou com estes coletivos e considera que estas manifestações nas ruas da cidade são tão legítimas quanto as mais tradicionais.
?O espaço público sempre será um lugar de tensão, de luta pela legitimação e visibilidade de certos discursos em detrimento de outros. Não podemos nos apegar a um projeto de visualidade ideal, limpo, ordeiro, higiênico, pois a própria sociedade é uma soma de várias visões fragmentadas, discordantes, de grupos muito diversos. Com isso temos que entender o picho, o grafite, o lambe , as intervenções etc. como discursos e maneiras outras de se relacionar com esse espaço comum?, analisa Guga.
Um dos projetos destacados por Guga é ?A cidade Frita?, A Cidade Frita, livro de poemas de Rodrigo M Leite, que aos poucos ganhou os muros da cidade com versos publicados anteriormente nos livretos alternativos distribuídos pelo centro. Com isso o livro foi se multiplicando em suportes.
Como ressalta Guga, o que chama atenção é como as poesias transitaram das mais diferentes formas percorrendo muros e mídias, que além de estarem na rua, estão na internet em forma de fotografia da rua e em pdf. Versos como ?a cidade frita entre os rios / asfalto brita calafrios?; ?teresina frita?; ?zona sub?; ?bem-vindo à cidade que frita? surgem anonimamente nos muros da capital e reconfiguram o projeto estético do autor.
ATALHOS DA POESIA NA RUA
?Em Teresina, gostei muito de uns ?atalhos para??, que ainda se vê em alguns pontos da cidade, como um que se encontrava próximo ao Palácio do Karnak, representando uma porta, com maçaneta, e a frase ?atalho para morte?, com traços bem simples?, destaca o professor Fabiano Gontijo sobre uma das intervenções que lhe marcaram na capital.
Guga Carvalho também se diz impressionado com o trabalho. ?Outra proposta que acho fundamental é ?Atalho para? do Granizo, não podemos dizer que é picho, nada deve a uma demarcação de território, nem tampouco aproxima-se de um grafite; é uma ideia muito bem resolvida em forma de linhas simples, uma porta. Acho fantástica, metafísica!?, declara.
O autor da obra, conhecido como Granizo, que trabalha no anonimato, afirma que não tem a preocupação de se esconder, mas sim que ?a imagem do meu nome não se torne mais forte que o meu trabalho?. Ele tem consciência que transgride as regras sociais, mas tem o cuidado para que sua arte não interfira no direito das outras pessoas.
?Eu tenho meu próprio código de ética. Eu procuro não fazer intervenções na casa de um trabalhador, um pai de família, um hospital... Eu procuro não ofender o dono de um lugar quando tem um dono. É um trabalho que mexe com um imaginário e inquieta as pessoas socialmente politicamente e poeticamente?, conta.
?Essa questão se é pichação ou não vai muito do olhar de quem observa o trabalho. Eu encaro como um trabalho de arte. A pichação por ela mesma é uma intervenção no espaço publico que danifica o ambiente e eu não faço um trabalho apenas para denegrir o espaço é um trabalho onde eu tento se comunicar de forma sensível e poético?, revela o diferencial da sua arte nos muros teresinenses.