Artistas urbanos espalham poesia pela capital cearense como respiro à rotina caótica

Seja povoando o espaço digital ou se confundindo nos muros, versos de André Solidão, Davi Melo e Serginho Gouveia ressignificam Fortaleza

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A situação é fácil de imaginar: trânsito caótico, carro parado, cansaço pelo dia que já foi. No turbilhão de gritos e ruídos da urbe, manter a serenidade é quase utopia.

Felizmente, é possível olhar para o lado e ver estampadas nos muros frases como "Ame a si mesma" ou "Faça a diferença pros dias não serem iguais" - imperativos que, além de ressignificar paredes, otimizam reflexões capazes de acompanhar o motorista ou passageiro mais sensível até em casa, diluindo em poesia a acidez da rotina.

A prática de revitalizar a função primeira de suportes considerados estáticos por meio de intervenções poéticas não é de hoje, porém. Paulo Leminski (1944-1989), por exemplo, foi um dos autores que mais se valeram dessa característica para destilar pensamentos fomentadores do legado que construiu.

No caso do escritor curitibano, eram os guardanapos a fonte de escoamento literário, onde eram plantadas sementes de textos que virariam poemas, canções ou até livros inteiros.

Algo que inspirou figuras contemporâneas, a exemplo de Pedro Gabriel - autor da obra "Eu me chamo Antônio" - e Clarice Freire, do projeto "Pó de lua".

Em solo cearense, três nomes merecem destaque pela forma como mantêm esse espírito de transgressão, abusando da criatividade no momento de transmitir os versos que escrevem rotineiramente.

Trata-se de André Solidão, Davi Melo e Serginho Gouveia, cujos trabalhos fazem de Fortaleza uma rota cada vez mais consolidada para que as cores saltem e as palavras de afeto vivam ainda mais, contornando os dias difíceis e as ásperas situações.

Aquilo que faz mudar

Reproduzir lambe-lambes e stêncils pela cidade começou pouco antes de 2015 na rotina de André Solidão. Foi por meio desse suporte que o escritor e artista visual percebeu como as mensagens de positividade chegavam nas pessoas, o que causavam nelas e como as fazia, em suas palavras, "transbordar".

"Isso é extremamente importante. Você tá naquele dia difícil ou no fim de um relacionamento complicado, por exemplo, e vê uma simples poesia ou mensagem que entende exatamente o que você está sentindo. Aquilo te muda, te faz transbordar", dimensiona.

"Além de chegar no próximo de uma forma bonita e encantadora, o conteúdo proporciona me divulgar como autor e, nisso, conhecer pessoas que gostam do trabalho e admiram poesia, acontecendo, assim, uma troca mútua. Esse carinho e admiração é o melhor retorno que posso receber".

Entre as mensagens que Solidão estampa por aí estão "Arboriza tua vida, menina", "Eu sou do tamanho do mar" e "O que restou de nós pra você?", com especial enfoque sobre dilemas comportamentais e de relacionamento.

"A poesia tem aos poucos ganhado espaço no Ceará e a arte urbana tem sido uma ótima forma de construir um público maior para o gênero, atraindo, a cada dia, mais leitores para nossas obras", avalia, em movimento positivo.

Essa conexão com o substrato poético, além de render novas perspectivas de acesso à arte, também é forma de salvação. André conta que, em meio a um coração partido, buscou como válvula de escape a escrita, e a poesia surgiu como a melhor e mais eficaz forma de se fazer presente naquele momento.

Foi elemento de cura. "Vivendo e vivenciando o outro com seus sentimentos, no dia a dia, fui percebendo como ela pode transbordar de nós de tantas formas diferentes. Então, por que não transformar esse transbordar em poesia?".

Rotina poética

Em algumas manhãs, logo cedinho, o Benfica é invadido pelo ato silencioso de Davi Melo. É quando o bairro-boemia, onde o escritor mora, vê as paredes incorporar detalhes diminutos, feito trocas de olhares, refrões de canções e cartas abertas após um longo (e, por vezes, doloroso) tempo.

"É sempre desafiador para mim, que me exponho às mais diversas situações, como a alguém parar um carro e perguntar o que faço ali cedo, em pleno domingo, ou outra pessoa retirar o lambe colado minutos depois que faço", confessa.

"A cidade é um grande livro a céu aberto", diz Serginho Gouveia (Foto: José Leomar)

Contornar as barreiras vale a pena, contudo. Em tempos em que nos falta tempo, ele diz que, em meio ao dia cheio, um poema num muro pode despertar algo ou alguém, do amor à saudade. "Sempre digo que a minha missão é despertar sentimentos, sejam eles quais forem. Até a pessoa que retira o lambe colado irá lê-lo antes de tal ato, logo a mensagem segue sendo repassada".

E de repassar mensagens Davi entende. É ele o criador da página "Inverno em Saturno", perfil fundado em 2016 que, até o fechamento desta edição, contabiliza mais de 270 mil seguidores nas redes sociais. A propósito, muitos dos poemas e micropoemas lá contidos vão parar nas ruas.

"A poesia deve ir para além das páginas dos livros. Deve estar inserida nas redes sociais, nos pontos de ônibus, nos muros das grandes cidades... O afeto importa e devemos sempre lembrar disso", enfatiza.

Não à toa, após quase três anos cumprindo o expediente, o poeta se diz realizado ao conseguir separar o atual momento da vida do que está sendo escrito por ele, num movimento de empatia e reflexo daquilo que atravessa a rotina dos que o acompanham.

"A poesia existe para que nós possamos ver as coisas além do que elas demonstram ser. É um mundo paralelo ao nosso. Cabe a nós, buscarmos enxergar isso"

Confissões expostas

Como traduzir, em apenas uma expressão, o gosto por ocupar a urbe com versos? Um projeto intitulado "Beijo na cidade" talvez dê conta do recado. A iniciativa - que envolve arte e poesia urbana - vem para somar no cenário de reavivamento da Capital por meio de diferentes intervenções.

As mesmas são executadas desde 2015, mas resgatam escritos do poeta e redator publicitário cearense Serginho Gouveia datados de 2007. "Hoje, são mais de mil frases sobre os mais diversos temas e que estão reunidas no meu blog, 'Confissões de um Phrasebook'. Resolvi criar o projeto escolhendo as expressões mais inspiradoras", resume o artista.

Para estar na rua, ele afirma que as linhas precisam estabelecer um diálogo entre as pessoas e a cidade, não apelando para o óbvio, porém. "Cada um pode interpretar de uma maneira só sua a respeito de assuntos como amor, carinho, perseverança e inspiração".

(Foto: José Leomar)

Espalhados especialmente pela orla - seja em bancos, cestos de lixo ou postes - os estêncils são alocados em pontos estratégicos, em que predomina um maior fluxo de pessoas.

Na visão de Serginho, é uma maneira de fazer com que um misto de personalidades e identidades contemple os escritos. "A cidade é um grande livro a céu aberto. Um local que respira arte urbana, pode e deve ter essa relação de troca e diálogo com seus moradores", avalia.

"Cada frase na rua é uma declaração de amor que faço pela cidade. Essa é minha forma de contribuir para que Fortaleza seja mais acolhedora e humana".

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