DOUGLAS GAVRAS, PATRICK FUENTES E CRISTINA SANO
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS)
Concluindo um mestrado em comunicação na UFBA (Universidade Federal da Bahia), Mariana Gomes, 24, é de uma família que foi transformada pela educação. Seu avô deixou o interior da Bahia para se tornar médico, o que estimulou a geração seguinte a ter um diploma superior e, em seguida, a geração dos netos.
Cotista, ela teve a possibilidade de dividir as cadeiras da graduação com outros alunos negros. "A minha geração já tem a referência da universidade como possibilidade real de manter esse processo de ascensão e conquistar direitos básicos."
Agora, além de ver a necessidade de manter e aprimorar as políticas de acesso ao ensino superior, ela quer pensar no dia seguinte. "É preciso que mais pretos e pardos percebam a educação como possibilidade de resguardar direitos e avançar em oportunidades de trabalho e autonomia."
Apesar de avanços no aumento da diversidade no ensino superior, mantido o ritmo atual, o Brasil deve levar quase 116 anos para que pretos e pardos tenham acesso às mesmas oportunidades que os brancos, de acordo com a mais recente edição do Ifer (Índice Folha de Equilíbrio Racial).
Enquanto políticas, como o sistema de cotas raciais, ajudaram a melhorar o indicador de equilíbrio racial para a educação -e ainda assim, a diferença em relação aos brancos só deve ser superada em 34 anos- a redução da desigualdade de renda e longevidade decepciona.
Quando considerada a renda, o tempo necessário até o equilíbrio é de 406 anos. No caso da sobrevida ou longevidade, a maior parte dos estados do país está em relativo equilíbrio racial, mas os indicadores têm piorado rumo ao desequilíbrio, segundo o Ifer.
O índice é uma ferramenta cuja metodologia foi elaborada no ano passado pelos pesquisadores do Insper Sergio Firpo, Michael França -ambos colunistas da Folha de S.Paulo- e Alysson Portella.
Ele ajuda a medir a distância entre a desigualdade racial no país e um cenário hipotético de equilíbrio, em que a presença dos negros nas faixas com melhores condições de vida refletisse o peso que eles têm na população com 30 anos ou mais.
Seus componentes são ensino superior completo, sobrevida e presença no topo da pirâmide de renda, tendo como base a Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Ao longo deste mês, outras reportagens irão detalhar o que ocorreu com esses itens.
O resultado é um indicador que varia de -1 a 1. Quanto mais próximo de -1, maior é a representação dos brancos em relação aos negros; já o valor muito perto de 1 aponta um cenário hipotético, em que a população negra teria mais representação.
Além disso, quanto mais próximo de zero estiver o número, mais perto o indicador vai estar do equilíbrio racial, considerando-se a população de referência.
Para estimar o tempo que falta até chegar o equilíbrio, é feito um cálculo usando a linha temporal dos dados e considerando a tendência linear que mais se aproxima do que ocorreu no período. Essa tendência, então, é extrapolada para o futuro, para que saiba em quanto tempo se chegará a zero.
MELHORA DA DESIGUALDADE É TÍMIDA, APONTAM NÚMEROS
Na versão mais recente do índice, os pesquisadores compararam os indicadores por um período de 2001 a 2021 e concluíram que a redução do desequilíbrio racial no país caminhou de forma modesta.
Em duas décadas, o indicador geral melhorou 0,071 ponto, indo de -0,389 para -0,318, apontando ainda a maior representação de brancos ante negros.
Nesse período, a região Norte foi a única do país que conseguiu atingir o patamar de equilíbrio racial relativo, que varia de 0,2 a -0,2. Nos estados ao norte, o indicador geral do Ifer passou de -0,301 para -0,196 ponto.
"São sociedades mais pobres também, com pouco espaço para ter uma desigualdade muito visível. Há uma certa homogeneidade, inclusive racial, na carência. São economias com crescimento e renda menores", diz Firpo.
Ainda assim, a maior queda se deu no Centro-Oeste, com uma melhora de 0,133 ponto, indo de -0,378 para -0,245.
Na outra ponta, nas regiões mais ricas do país, a desigualdade é bem mais forte: o Sudeste teve o pior indicador em 2021, de -0,383 ponto (já era o lanterninha em 2001, com -0,411); no Sul, passou de -0,308 em 2001 para -0,253 em 2021.
Das 27 unidades da Federação, 22 melhoraram, 4 pioraram (Ceará, Santa Catarina, São Paulo e Sergipe) e 1 ficou estagnada (Espírito Santo). No caso dos estados, como a base amostral para algumas UFs é muito pequena, optou-se por utilizar as médias móveis de três anos, e a série vai de 2004 a 2021.
Quando se olha para os dados gerais do país, a pequena melhora foi impulsionada pelo indicador que aponta o acesso ao ensino superior, com uma melhora de 0,223 ponto, ao passar de -0,598 para -0,375.
"O Brasil ainda não dá acesso à elite para os negros. Isso tem se reduzido, mas em uma velocidade muito pequena, o que deixa claro o quanto é necessário aumentar o número de políticas públicas integradoras", diz Firpo.
Ele avalia que o reflexo da redução da desigualdade só deve começar a aparecer com mais clareza nos demais indicadores após maiores investimentos em qualificação profissional.
"Facilitar o acesso à universidade pública é uma demanda histórica e importante, mas a forma mais eficiente de reduzir a desigualdade de oportunidades é integrar negros e brancos, ricos e pobres desde cedo, fazer com que a parcela mais excluída da população conviva com pessoas que vão ampliar sua possibilidade de acesso a um conjunto de oportunidades lá na frente", diz.
No mesmo intervalo de tempo, o indicador nacional de renda melhorou apenas 0,068 ponto, de -0,516 para -0,448 ponto.
Nesse caso, o cálculo da renda considera a proporção de pretos e pardos que alcançam ou ultrapassam a renda (incluindo salários e demais rendimentos) que separa os brancos 10% mais ricos dos demais 90%, além de seu peso populacional.
Já os dados de sobrevida -apesar de seguirem no patamar de equilíbrio entre negros e brancos, na maioria dos casos- apontam uma piora: era de -0,052, em 2001, e foi para -0,130 duas décadas mais tarde.
O cálculo do componente de sobrevida no Ifer é semelhante ao que é feito para o indicador de renda: extrai-se o grupo de brancos 10% mais idosos e calcula-se a idade que o separa dos demais 90%.
O destaque negativo também é o Sudeste, onde o índice de Sobrevida passou de -0,104 para -0,202, saindo do nível de equilíbrio para o de maior representatividade branca.
AVANÇO DE LONGEVIDADE E RENDA DEMANDA INVESTIMENTOS
Mesmo celebrando os avanços em parte dos indicadores, os especialistas ouvidos pela reportagem destacam a necessidade de políticas públicas direcionadas para o combate ao racismo, tanto no mercado de trabalho quanto na rede pública de atendimento, para que os demais indicadores também avancem.
"Não basta que apenas a educação melhore, cada um dos componentes possui o mesmo peso e deveria ser observado de forma consistente por políticas públicas de redução da desigualdade", diz França.
Ele também destaca que a piora do índice de sobrevida no período, que caminha para o desequilíbrio, pode indicar a diferença no acesso a planos de saúde privados, um fator em que a população branca sempre leva vantagem, e a falta de investimentos adequados no SUS (Sistema Único de Saúde).
"Já para o componente da renda é preciso começar a discutir mais seriamente as barreiras que existem para os negros. Ampliamos o acesso ao ensino superior, mas isso ainda não se reflete em melhores postos no mercado de trabalho", complementa.
Além de educação, saúde e renda, fatores como privilégios ligados a cor de pele e estrutura familiar economicamente saudável ajudam a explicar a queda tímida no desequilíbrio entre negros e brancos", diz Portella. "Chegar aos 10% mais privilegiados no Brasil é difícil. Em um país tão desigual, muitas vezes os pequenos ganhos não são suficientes para colocar [os negros] no topo."
Sobre as diferenças regionais, ele acrescenta que locais com maior concentração de renda, como o Sudeste, possuem obstáculos adicionais para a população negra, dado o privilégio econômico dos brancos.
"Pessoas realmente ricas contam com redes de contatos que desempenham um papel muito importante [na ascensão social]. Então, para um negro da periferia vai ser muito difícil acessar uma rede que vai te permitir entrar nesse grupo; já uma pessoa branca fica mais fácil se manter lá", diz.
"A população [negra] também acaba sendo mais vulnerável aos ciclos da economia e às decisões do governo", avalia Marcelo Paixão, economista e professor da Universidade do Texas. Segundo ele, apesar de melhoras simbólicas e materiais no desequilíbrio entre brancos e negros no Brasil, momentos de crise econômica ou de alta na inflação, tendem a afetar mais pessoas negras.
Para Paixão, a desigualdade passa por ciclos, no qual pode diminuir e se agravar em diferentes períodos históricos. No entanto, a falta de estrutura familiar mais organizada, as dificuldades no acesso ao mercado de trabalho formal e à Previdência são maiores para os negros.
"Equidade é dar ferramentas específicas a grupos que tiveram uma desigualdade de oportunidade na origem. Se você nasce numa família que consegue suprir a ineficiência do setor público, seu filho larga na frente", diz Carla Beni, economista e professora no MBA da FGV (Fundação Getulio Vargas).
Ela destaca que a discriminação também impende o equilíbrio relativo entre negros e brancos. "A falácia da meritocracia dificulta o aprofundamento do debate e criação de novas políticas para aumentar representatividade da população negra e parda no país", diz.
Para o economista Mário Theodoro, autor de "A Sociedade Desigual - Racismo e Branquitude na Formação do Brasil", ainda faltam políticas direcionadas para a redução da desigualdade.
"Um estudo que fiz durante o governo anterior do presidente Lula mostrava a redução da pobreza entre negros e brancos, mas agora é preciso pensar em mecanismos que privilegiam os negros mais pobres. As políticas universais são fundamentais, mas se não forem complementadas pelas políticas de combate ao racismo, o patamar de diferença vai se manter."