A brasileira Daniela Vasconcellos conseguiu, em janeiro deste ano, algo raro - e talvez inédito - na Austrália: a residência permanente concedida por excelência em tatuagem. O visto de “talento distinto” (Distinguished Talent Visa, em inglês) dá o direito de moradia no país a pessoas que se destacam em sua profissão, nas artes, pesquisa ou esportes.
Daniela diz não ter conhecimento de outra pessoa que tenha conseguido o documento por ser tatuador. “Foi uma grande vitória, fiquei muito feliz”, diz a moça, que tem 36 anos e é de Porto Alegre, mas mora em Sydney há seis anos.
O visto não veio fácil - o processo durou, ao todo, 2 anos e 7 meses, e incluiu uma negativa inicial do governo australiano. Ela e a advogada recorreram da decisão, e, quando a permissão de residência permanente finalmente veio, foi com uma afirmação da juíza de que a brasileira era “um bem para a Austrália”.
Em outras áreas, explica Daniela, o processo pode durar bem menos - para o esporte, por exemplo, ela conhece pessoas que conseguiram a residência permanente em seis meses. Na tatuagem, por outro lado, todos os casos anteriores tiveram o pedido negado pelo governo, segundo Daniela.
“Esse visto representou toda uma luta de uma causa de uma profissão discriminada, que agora é vista como arte. Agora, o governo vê a tatuagem como arte”, diz Daniela.
Para conseguir o documento, a lista de requisitos é grande: é preciso ter uma nomeação de alguém da área, reconhecimento internacional na profissão (ela já viajava como tatuadora convidada ao redor do mundo), provar excelência, ter entrevistas publicadas, premiações, e usar o trabalho para agregar algo ao lugar onde mora.
E também não sai barato: de acordo com o site do governo da Austrália, custa 4.110 dólares australianos (cerca de R$ 10,8 mil).
“Foram muitas provas - não é nada fácil. E, depois de um ano [do primeiro pedido], tive o visto negado”, relata. “Mas eu preenchia todos os critérios, por isso resolvemos insistir, apelar. Meu currículo eram mais de 50 páginas. No próprio tribunal, quando chegou no final da audiência, que durou duas horas, a juíza disse que não precisava mostrar mais coisa”, conta, rindo.
A brasileira relata que o visto é tão raro de ser concedido que chegou a procurar dois advogados que nem sabiam que ele existia. "Mandaram procurar um patrocinador ou casar", conta.
Depois de apelar da primeira decisão, ela recebeu a resposta positiva dois dias depois da audiência, em dezembro passado. O visto chegou no dia 9 de janeiro, e ela tatuou a data no próprio braço. No ano que vem, a brasileira afirma que já pode pedir a cidadania australiana, o que pretende fazer.
"Consegui uma meta, que era essa [o visto], mas eu não paro de aprender -- minha grande meta da vida é aprender o máximo que puder e transmitir conhecimento para facilitar a vida dos outros", diz. “Tenho muita gratidão a todos que me ajudaram a conquistar o visto e aos clientes que sempre acreditaram na minha arte”.
Carreira
Daniela conta que começou a tatuar aos 13 anos em São Paulo, onde morou por um tempo. Aos 18, já tinha seu próprio estúdio em Porto Alegre. Antes de ir embora para Sydney, onde está há seis anos, começou em Florianópolis um projeto de fazer tatuagens em cicatrizes de mulheres com câncer de mama.
“Começou há 7 anos. Antes de vir pra cá, eu falei que queria fazer algo grandioso, significativo, de definitivo para deixar em homenagem ao meu país. Minha intenção não era voltar”, explica. “Quis fazer para o Brasil, e, ao mesmo tempo, para a minha arte. Eu me sinto muito bem ao ajudar as pessoas, acho que acabo sendo a maior ajudada”.
Em Sydney, ela continuou a iniciativa de cobrir as cicatrizes com tatuagem. Elas são mais difíceis de conseguir que, por exemplo, os desenhos dos mamilos, feitos em mulheres que passaram por uma mastectomia. Esses, ela diz, os próprios hospitais já fazem. As tattoos, não - e Daniela as faz de graça.
“Mesmo os que cobram, não é todo mundo que faz, porque é em cima de uma cicatriz e em uma pessoa que está debilitada”, diz.
“É muito emocionante - acho que isso não tem dinheiro que pague. Muitas não se reconhecem mais quando se olham no espelho - e é como se eu devolvesse a vida a elas”, conta a artista. Ela acredita que, apesar de relevante para o visto, o trabalho não foi decisivo para obter o documento, por causa da quantidade de critérios que são considerados.
Daniela também usa o próprio corpo como portfólio: ela conta que já tatuou a própria perna - inclusive atrás, com um espelho - e o braço, no meio do peito, na costela e perto do pescoço.
"Onde alcanço, eu faço. É uma forma de ter meu portfólio ao vivo, em mim. É um desafio de autocontrole emocional, você só usa uma mão. A imagem é invertida - você faz de ponta-cabeça. É um treinamento melhor ainda", afirma.
A habilidade com o desenho vem da infância: aos 2 anos de idade, os professores chamavam os pais dela na escola para dizer que o modo como ela desenhava não era comum. Daniela destaca, inclusive, que uma professora da sexta série tem uma tatuagem feita por ela.
A brasileira abriu o próprio estúdio em Sydney há um ano e meio, e só atende com hora marcada. Também não costuma copiar tatuagens. O local onde atende não tem placa: os clientes costumam chegar por recomendação.
“Gosto de trabalhar exclusivamente com cada um dos clientes. Não costumo fazer cópia, é um tratamento personalizado. É o meu momento com o cliente que representa a arte dele”, diz Daniela.
O preconceito com a profissão, segundo a moça, costuma ser maior nos países subdesenvolvidos -- como o Brasil -- do que em lugares como a Europa ou a própria Austrália. Lá, afirma a tatuadora, “ninguém está nem aí”.
Mesmo assim, ela conta que sofreu preconceito no próprio meio por ser mulher.
“É o tempo inteirinho. É uma luta diária. Mas não me deixo abalar. Vou me abalar com a opinião de algum cliente meu que não gosta do meu trabalho, mas não com a de uma pessoa que nem conheço”, diz.
Além de tatuadora, Daniela tem várias outras profissões: é personal trainer, bartender, já lutou no boxe amador da Austrália, se formou em administração no país e, no Brasil, chegou a estudar direito, mas não terminou o curso. Também já escreveu um livro infantil.
"As pessoas ficam sem argumento para me mandar estudar. Eu acho que já estudo bastante", afirma. Mas a tatuagem é especial para a artista. "Embora pratique outras profissões, o que eu amo fazer é tatuar", resume.