Conheça o pensamento social no Brasil e os desafios no campo da pesquisa

Entrevista com a doutora em Sociologia Eliane Veras Soares, docente da Universidade Federal de Pernambuco e coordenadora do programa de pós-graduação em Sociologia da instituição

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Os desafios da pesquisa em Sociologia no Brasil e o Pensamento Social Brasileiro foram temas principais da entrevista realizada com a professora Eliane Veras Soares, doutora em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB) e natural de Teresina. Atualmente é coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco, em Recife, onde é radicada há 13 anos.


No seu currículo há experiências acadêmicas na Suíça e Portugal, além de liderar estudos inovadores a partir da Literatura Africana de Língua Portuguesa, de onde se pode analisar a profunda ligação entre o continente e a formação social do Brasil, também outras questões mais amplas a partir da África, como o desenvolvimento do capitalismo global.

Convidada para a aula inaugural da 4ª turma do mestrado em Sociologia da Universidade Federal do Piauí, ocorrida no dia 23 de março, em Teresina, Eliane Soares Veras debateu com professores e estudantes sobre o Pensamento Social no Brasil e os desafios na formação de mestres em Sociologia. Na ocasião, a pesquisadora mostrou que é bastante crítica ao que ela define como “falta de missão” dos cientistas sociais neste século e que eles devem recuperar a “dignidade” relacionada à pesquisa.

Além disso, destaca a obra A Revolução Burguesa no Brasil, do sociólogo Florestan Fernandes, escrita no ano de 1975, como grande referência ao tema, por se apresentar como uma rica reflexão sobre a grande estrutura social brasileira. Segundo ela, a burguesia descrita por de Florestan Fernandes não mudou em nada nas últimas décadas no Brasil, apesar do surgimento de políticas sociais arrojadas contra a pobreza e crescimento das universidades federais. Confira a entrevista exclusiva da socióloga ao Jornal Meio Norte.

MN – Professora, na sua visão, quais os verdadeiros desafios da formação dos mestres em Sociologia no século XXI no Brasil?

EV - O desafio em nossa disciplina sempre foi compreender os processos sociais, tanto aqueles que tendem a se repetir quanto aqueles que provocam mudanças. Com a diversidade de perspectivas teóricas que foram sendo produzidas no decorrer do século XXI, a Sociologia tendeu a se “retrair” do ponto de vista do seu escopo analítico.

Ao mesmo tempo em que ela passou a se interessar por aspectos aparentemente banais da vida cotidiana, também abriu mão de explicações amplas sobre os processos de transformação social. Entendo que o grande desafio é tentar articulares as transformações da vida cotidiana com as mudanças nas grandes estruturas sociais. Isso não é novidade, já vinha sendo proposto por C. W. Mills desde o final dos anos 50 do século passado. A questão fundamental é como favorecer o trabalho coletivo no âmbito da pesquisa para se alcançar este objetivo.

MN- Durante a sua palestra realizada na aula inaugural de segunda-feira (23), a senhora foi enfática quanto à falta de missão entre os cientistas sociais deste século. Recentemente, o professor da Unicamp Rogério Cézar de Cerqueira Leite publicou um artigo comentando dados da Revista Nature [1], afirmando que cientistas brasileiros conseguem apenas 1% de publicações em revistas de grande prestígio e que, ainda assim, utilizam um grande volume de recursos financeiros. Embora a Nature seja especializada em Ciências da Natureza e Medicina, é possível fazer um paralelo desse dado à sua afirmação e às Ciências Humanas. Se concorda, qual pode ser a natureza deste problema e que propostas de transformação podem ser sugeridas?

EV - Provavelmente o professor Rogério Cezar de Cerqueira Leite tenha razão em sua crítica à baixa produtividade das ciências no Brasil, ao se referir especificamente aos recursos aplicados nas ciências “duras”. Não posso opinar sobre isso, não sou especialista no tema e não conheço os dados. Gostaria apenas de chamar atenção para algumas questões periféricas: a que serve este conhecimento? Quando um cientista brasileiro publica num periódico internacional de alto impacto, quem está se beneficiando? Os resultados dessas pesquisas serão aplicados em que setores? Na indústria bélica? Na tecnologia de transportes e comunicação?

No aumento da produtividade acompanhada de formas semiescravistas de exploração dos minérios raros necessários à produção de novas necessidades? A meu ver a crítica à baixa produtividade da ciência aqui produzida deve primeiro passar pelo crivo do tipo de ciência, ou melhor, conhecimento que se produz, a quem serve, quem se beneficia, e quem fica com o “prejuízo”. Quanto às humanidades, boa parte do conhecimento produzido com financiamento direto na pesquisa é induzido. Isto é, são pesquisas encomendadas, mediante edital público, pelos órgãos governamentais, notadamente o Ministério da Saúde, que visam ora propor, ora avaliar as políticas públicas em andamento. Nunca é demais lembrar que em toda ciência a pesquisa básica é fundamental para o seu desenvolvimento. A pesquisa básica é aquela pesquisa de caráter exploratório que não tem como finalidade a descoberta imediata de um “produto”, mas se lança num campo ainda desconhecido, para explorá-lo.

MN - Os seus estudos mais recentes direcionam atenção às relações dos países da África de Língua Portuguesa e Brasil e o impacto no Pensamento Social. As pesquisas também incluem a análise dos fluxos de literatura entre os países. Que descobertas importantes destas pesquisas para o Brasil podem ser mencionadas?

EV - A primeira descoberta é o tamanho da nossa ignorância! Os autores clássicos do nosso pensamento social preocuparam-se em explicar e compreender o Brasil e a sua formação social. Desde o século XIX esta foi a grande questão: como poderia o Brasil se tornar uma nação civilizada se tinha na sua formação social as marcas dos povos indígenas e dos povos africanos? No século XIX acreditava-se que esta “deficiência civilizacional” poderia ser superada com o incentivo do estado à migração europeia.

Aos poucos a mestiçagem, antes vista como degeneração, passa a ser vista com salvação, a possibilidade de se formar o que na literatura ficou conhecido como “mestiço superior”. Até chegarmos a Gilberto Freyre e sua fórmula de “equilíbrio de antagonismos” que coloca a mestiçagem como símbolo positivo (e democrático!) da nacionalidade. Entretanto, estes pensadores não se estudaram efetivamente o continente africano.

Sempre houve um profundo desconhecimento sobre a África e em nosso imaginário África ficou registrada como sinônimo de escravidão. A importância de se estudar o continente africano não se reduz à profundidade da sua relação com a nossa formação social, mas à compreensão do desenvolvimento do capitalismo global, desde a indústria da escravidão moderna, que durou quatro séculos, ao colonialismo tardio, que se inaugurou no final do século XIX, com a Conferência de Berlim, e durou até meados dos anos 1970.

Desconhecer as realidades diversas do continente africano e suas relações com o capitalismo em suas diversas fases é ignorar as facetas mais sombrias deste processo. A literatura, creio, é um caminho privilegiado de acesso a este continente, formado por 54 países, quase todos plurilinguísticos e multiétnicos. Enquanto nos desconhecíamos reciprocamente, os escritores brasileiros modernistas, por exemplo, influenciavam profundamente as primeiras gerações de poetas moçambicanos, angolanos, guineenses, são-tomenses e caboverdianos. Foram estes poetas que transformaram a poesia em arma de combate, deslanchando o movimento nacionalista, sustentando anos de lutar para, enfim, conquistar a independência, um processo ainda inacabado.

MN - O olhar à África pode ser considerado uma inovação para cientistas sociais brasileiros? Diante disso, há críticas sobre a influência europeia?

EV - O diálogo com os intelectuais africanos e o olhar para as realidades diversas ali presentes bem como sobre os mecanismos de dominação utilizados no processo de colonização podem ajudar o cientista social brasileiro a relativizar determinadas “verdades” que conformaram a sua formação. Trata-se de um exercício de estranhamento no qual nós não buscaremos mais nos identificar apenas com o “europeu”, mas nos veremos como parte de processo de formação das sociedades coloniais, sem as quais o capitalismo contemporâneo não poderia existir. Esta mudança de posição, esta nova “posicionalidade” possibilitará um novo olhar sobre o outro europeu e sobre nós mesmos.

MN - Aos estudantes que desejam investir em uma carreira acadêmica, o que deve ser observado ao escolher a pós- graduação em Sociologia e que tipos de pensamentos o novo pesquisador na área deve exercitar? Além disso, como os pesquisadores provenientes de outras áreas, como o Direito e a Comunicação, podem contribuir e serem influenciados ao entrar no campo da Sociologia?

EV - A Sociologia é uma disciplina aberta porque lida com tudo aquilo que é humano em sua dimensão social.

Portanto, os estudantes devem estar preparados para abrir mão de suas convicções e colocar à prova suas certezas. Ver a si mesmos como parte daquilo que procuram compreender, aplicar o mesmo rigor crítico que dirige aos seus “informantes” às suas próprias análises, questionar sempre. Deve também saber que o conhecimento é incompleto e deverá ser superado. O diálogo com os pesquisadores de outras áreas deve ser estimulado, mas isso não é tarefa fácil. Cada campo tende a formar um léxico próprio que, muitas vezes, dificulta a troca e compreensão mútua.

 

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