Nas últimas duas semanas, o coronavírus afetou gravemente a família do médico Douglas Sterzza Dias, 28 anos. Em três dias, ele perdeu a mãe e a avó. Um tio está na UTI. Outro já sente falta de ar. "É notícia ruim atrás de outra pior", disse Douglas, também infectado, ao blog.
Ele trabalha no Hospital São Paulo, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), e em outros serviços públicos. Em um depoimento contundente, Douglas descreve as dores emocionais e os danos físicos provocados pela covid-19.
O jovem médico, que faz residência em cirurgia vascular, precisou interromper a quarentena para enterrar a mãe. Sozinho, sem ter ninguém para abraçar, viu o caixão ser transferido do carro funerário direto para a cova. "Para a minha família não foi uma gripezinha"
Parecia, mas não era
Minha mãe, Rita de Cássia, teve os primeiros sintomas no domingo (15). Fui passar o final de semana com eles, em Santana. Ela disse que estava com dor no corpo. Pareciam sintomas gripais. Não tinha tosse, febre.
Na terça, ela já estava muito mal, com falta de ar. Trouxe minha mãe para minha casa, na Vila Mariana, para levá-la ao Hospital São Paulo. Naquele dia, ela já ficou internada. Não conseguia respirar direito. Nesse mesmo dia foi entubada na UTI.
A parte renal também foi comprometida. Ela precisou fazer diálise. Os rins não aguentaram a doença e todas as medicações que foram usadas. Isso é algo que começa a ser descrito. Parece que o coronavírus ataca não só a parte pulmonar, mas também a renal.
Minha mãe teve uma infecção bacteriana na corrente sanguínea. No final das contas, isso é que foi o pior. Ela sofreu um choque séptico e não conseguiram reverter. Morreu, ao anos, na última sexta-feira.
Como fiquei ao lado dela no hospital, precisei ser isolado no meu apartamento. Meu pai e minha irmã ficaram isolados na casa deles.
Dor em família
Enquanto minha mãe estava internada, meu tio também começou a apresentar sintomas e foi internado na UTI. Hoje soube que outro tio está com dificuldades respiratórias. É notícia ruim atrás de outra pior. Não sabemos onde minha mãe pode ter se infectado. Depois que a transmissão se torna comunitária nem adianta pensar nisso.
Minha avó Iracema, de 85 anos, havia caído em casa e, por isso, não conseguimos isolála totalmente. Os filhos precisaram se revezar para não deixá-la sozinha. Ela soube que minha mãe estava na UTI.
Alguns dias depois minha avó começou a delirar. Teve uma hipoxemia grave (deficiência de oxigênio no sangue), ficou toda roxa e foi levada para o Hospital Sancta Maggiore, da Prevent Senior.
A tomografia revelou que o pulmão estava comprometido, com sinais de infecção pelo coronavírus. Ela foi para a UTI.
Sem velório
Quando sofreu uma parada cardíaca, a família decidiu não tentar nenhuma medida heroica. Isso só prolongaria o sofrimento. Priorizamos medidas de conforto. Ela sofreu mais uma parada cardíaca três dias depois e acabou falecendo. Morreu antes da minha mãe. Não pudemos fazer velório. Somos uma família de origem italiana. Gostamos de estar juntos, sempre com muito contato e muita alegria, mas não pudemos nos reunir para a despedida.
Última cena
Não está sendo fácil. Posso dizer que a covid-19 não é uma gripezinha. Para a minha família não foi.
Em três dias, perdi minha avó e minha mãe. No hospital, me deram a oportunidade de vêla pela última vez. Não quis. Como médico, sei o que iria encontrar. Não queria vê-la entubada, inchada, cheia de bomba.
Sei que ali eu não veria a mãe que sempre tive. Preferi guardar a imagem dela ainda viva, sorrindo para mim através do vidro da UTI.
Solidão no cemitério
Precisei escapar da quarentena para cuidar do sepultamento. Não queria que meu pai se expusesse. Ele é idoso e diabético. Tive que reconhecer o corpo da minha mãe no necrotério do Hospital São Paulo.
Foi tudo muito rápido. Os funcionários estavam com medo do contágio. Depois o caixão foi lacrado. Dei o endereço do cemitério para o serviço funerário. Sozinho, de máscara, peguei meu carro e fui dirigindo até lá.
Pelo caminho via gente fazendo caminhada e correndo nas ruas, como se nada estivesse acontecendo. As pessoas ainda não entenderam que estamos vivendo algo muito grave. Elas não têm ideia da dimensão do problema.
O corpo da minha mãe saiu do carro funerário direto para a cova. Fui a única testemunha da família. Eu ali, sem ter ninguém para abraçar e compartilhar a minha dor. Peguei o carro e voltei para o meu isolamento.
Vida na quarentena
Passei duas semanas preso no apartamento. Logo que recebi o diagnóstico avisei ao zelador do prédio. Não faz sentido esconder. Colocaram álcool gel nas áreas comuns.
Pedi para a faxineira não vir para não se infectar. Cozinho ou peço entregas. O zelador me ajuda, trazendo comida até a porta da minha casa. Preenchi o tempo assistindo a séries. Tentei não ver noticiário demais.
Felizmente, os meus sintomas não foram tão graves. No dia em que a minha mãe foi internada, eu comecei a ter muita dor no corpo, nariz entupido, coriza. Muita dor de cabeça e tosse.
Também perdi o olfato e o paladar. Só sei se a comida é quente ou fria. Não consigo perceber o que estou comendo. Nem dá vontade de comer.
Prossão de risco
Retorno ao trabalho no Hospital São Paulo nesta semana. Como as cirurgias eletivas foram interrompidas, estou preocupado também com o meu aprendizado. A residência é o momento em que o cirurgião treina. Como vou treinar cirurgia vascular se não há procedimentos? Se não faço isso agora, no meu tempo de residência, não terei a oportunidade de aprender lá na frente. Talvez o meu ensino fique prejudicado. É uma balança muito difícil de equilibrar.
Trabalho nesse e em outros hospitais do SUS. Há vários colegas afastados. Tenho um colega ortopedista que passou cinco dias na UTI, dois no quarto e teve alta hoje. Uma pessoa de 27 anos que ficou mal. Ele é atleta, sem nenhuma doença pré-existente.
Essa história de que em atleta a infecção é só uma gripezinha não é bem assim. Os profissionais de saúde estão com medo de pegar o vírus. Não há equipamento de segurança para todo mundo. Máscara, óculos ou aquela proteção que plástico que cobre o rosto todo, touca, avental descartável. Ainda temos isso no Hospital São Paulo, mas muitos lugares não têm para todo mundo.
Não dá para trabalhar sem equipamentos de proteção individual (EPI). Mesmo que a pessoa tenha contato com o vírus, ela pode se reinfectar com alguma outra cepa. Na China, há casos de reinfecção de profissionais de saúde.
Como lidar
Prezo pela vida humana antes de qualquer coisa. Estudei para isso. Se as pessoas não estiverem vivas, não haverá quem pense em economia. Eu me agarro à fé. Sou espírita, como toda a minha família. Acreditamos que ninguém parte antes da hora. Minha mãe criou dois filhos muito bem. Penso nisso e na missão que ela cumpriu. Como médico, talvez eu tenha uma relação um pouco diferente com a morte. Lidamos com ela o tempo todo.
É claro que é mais difícil quando acontece com um ente querido. Ou com várias pessoas queridas ao mesmo tempo. Choro todos os dias.