"Nasci em uma família muito unida. Antes de me casar, vivi durante muito tempo com meus pais e meu irmão em Washington DC, nos Estados Unidos. Meu pai trabalhava no Banco Interamericano de Desenvolvimento, era um economista competente. Em 2015, se aposentou e resolveu com minha mãe que voltariam a morar no Brasil. Foram então para Araras, na cidade de Petrópolis, estado do Rio de Janeiro, onde a gente sempre teve uma casa que era o refúgio da família. Me casei e fui morar em Valinhos, cidade ao lado de Campinas, em São Paulo. Até novembro do ano passado, quando meu marido começou a atuar em uma empresa de tecnologia aqui Póvoa de Varzim, no norte de Portugal, e nos mudamos para cá. Meus pais vieram com a gente para ajudar com a mudança, e ficaram quase um mês conosco curtindo minha nova casa e os netos. Depois disso, só nós vimos pela internet, em nossas longas e divertidas chamadas de vídeo diárias.
Quando chegaram, dia 6 de março, tiveram um pouco de tosse e fadiga. Mas achamos normal, provavelmente culpa da mudança climática que logo passaria, era só descansar. Já em Araras, pediram aos dois funcionários da casa que não fossem trabalhar e avisaram a parentes e amigos que ficariam em quarentena voluntariamente.
Quatro dias depois, nos vimos como sempre pela tela do celular. Em seguida, meu pai sentiu falta de ar e dirigiu até o hospital da cidade, Santa Teresa, na companhia de minha mãe, que também não se sentia bem. Lá, foram imediatamente encaminhados para o isolamento. Nos vimos mais uma vez virtualmente e eles contaram que ambos estavam infectados pelo coronavírus. Depois disso, só minha mãe atendia às minhas ligações. Ele já estava entubado.
Uma semana mais tarde, com meus pais ainda internados na UTI, em 18 de março, recebemos a notícia que meu tio Sérgio [Trindade], engenheiro químico que vivia em Nova York com minha tia, com quem meus pais haviam estado dias antes, havia falecido devido a complicações da Covid-19.
Ficamos extremamente abalados. Tio Sérgio era tão próximo, um homem inteligente, culto. Em 2007, participou do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas, o IPCC, grupo que ganhou o Prêmio Nobel da Paz. Atualmente, atuava como consultor em negócios sustentáveis e integrava o Comitê Científico para Problemas do Ambiente’ (Scope, na sigla em inglês), que é uma agência intergovernamental associada à Unesco. Era referência no que fazia. Estava com 79 anos, mas ainda cheio de vida e projetos.
Meu pai estava no CTI quando meu tio morreu, e não soube de nada. Dois dias depois do enterro e dez após ser internado, também não resistiu. Minha mãe soube da morte do meu pai pela médica e a enfermeira que a acompanham no hospital. Essa talvez seja a parte que mais dolorosa desta história, que é inteira triste. Não pude abraçar minha mãe no momento mais difícil de nossas vidas, em que nós duas precisávamos desse abraço.
Meu irmão, que mora em Fortaleza, deixou sua mulher e os filhos pequenos para cuidar de tudo e dar apoio à minha mãe, que segue internada. Está na linha de frente lá, resolvendo todos os trâmites morosos e doloridos praticamente sozinho --só com o nosso apoio virtual, além do de tios e primos que estão no Brasil sem poder sair de casa.
Quanto a mim, sigo daqui devastada, presa em Portugal, sem chão e ainda sem acreditar em tudo que nos aconteceu. Ontem, tivemos uma primeira vitória: minha mãe foi para o quarto do hospital, saiu da UTI, o que significa que está bem melhor. Não está mais em total isolamento, mas segue sem contato físico com as pessoas. Temos nos falado diariamente. Ela conta que tem sido acolhida por todos, que recebe a comida sempre com um bilhetinho fofo dizendo que tudo vai ficar bem, que ganhou da equipe médica várias cartinhas e mensagens carinhosas, está inundada de amor. E que no novo quarto há uma janela fechada, mas, através do vidro, ela consegue ver uma árvore – e se enche de esperança.
A dor de perder um pai maravilhoso, de falar sobre isso com sua mãe por chamada de vídeo, sem poder abraça-la é lancinante. Assistir tudo isso à distância, de mãos atadas, devastador. Só quem perde alguém dessa forma entende de verdade a gravidade do que estamos vivendo. A situação é realmente muito, muito crítica. Então, por favor, seja consciente. Se puder ficar em casa, fique. Não minimize a situação, não pague para ver. Esse vírus é real, letal e perigosíssimo. Não é só uma gripezinha. Ele pode ser fatal inclusive para pessoas saudáveis, com condições físicas privilegiadas. Aconteceu na minha família. Duas vezes, em menos de dois dias.”