O Piauí destaca o dia 27 de maio como o Dia Estadual de Enfrentamento ao Feminicídio. A data foi escolhida em alusão ao crime bárbaro que chocou o Estado e todo o Brasil: o caso de Castelo do Piauí, ocorrido em 2015, quando um adulto e quatro rapazes, na faixa dos 15 aos 17 anos, amarraram, estupraram, torturaram e jogaram de um penhasco quatro adolescentes que tinham ido visitar um mirante. Uma delas morreu. Após quatro anos da tragédia, muitas mulheres, que são mortas apenas pelo fato de serem mulheres, continuam fomentando estatísticas.
Somente em 2019, foram 20 mulheres assassinadas no Piauí. Deste número, 12 foram por razões de feminicídio, o que representa 60% dos crimes registrados. Dos 12, 10 foram no interior e dois na capital. O dado mostra o recorte de um povo ainda machista, pois mais da metade das mulheres assassinadas em todo o Estado foram por razões de gênero.
Os números assustam quando comparados aos do ano de 2018, que registrou 25 casos em 12 meses. Antes do final do primeiro semestre do ano, o número já beira à metade dos casos do ano passado.
Os crimes, que geralmente são causados por ciúme e sentimento de posse, culminam com pior. O Estado viveu muitos casos emblemáticos, como o caso da estudante Camila Abreu, morta pelo capitão Alisson Watson. Ou, mais recente, o caso de Maria Aparecida Espírito Santo, grávida de sete meses, que foi morta a facadas em Itainópolis, município localizado a 371 km da capital, no dia 28 de abril.
Em Teresina, as duas vítimas somam duas coincidências. Lorrany Talya, de 24 anos, e Mônica Costa, de 50, foram assassinadas a facadas na zona Sul da cidade. Lorrany, no dia 3 de maio, no Residencial Torquato Neto, vítima de Antônio Alves de Sousa, que tentou o suicídio em seguida. Já Mônica foi vítima de Gil Carlos Moreira Rodrigues, com quem estava casada há 10 anos, no dia 26 de abril, no apartamento da família, no bairro Cristo Rei. Um recorte triste manchado de sangue.
“Eu não sabia que ele era agressivo”
M.A. tem 32 anos. A dona de casa não gosta de lembrar do ex-marido, policial militar. “Ele nunca me bateu. Mas falava umas coisas terríveis. Eu jamais pensei que ele pudesse me agredir, até o dia que ele apontou a arma para mim. Depois deste dia, nunca mais. Esperei ele dormir, bêbado, e nunca mais voltei para casa”, conta.
A dona de casa diz que evita, ao máximo, o contato com o homem, apesar de não ter pedido medidas protetivas. “Confesso que até hoje tenho uma certa tensão, mas foi difícil sair de casa sozinha. Graças a Deus não tivemos filhos. Era um relacionamento recente, mas que eu tinha tido confiança para ir morar com ele”, conta.
Já M.N.C., universitária, precisou de medida judicial. “Ele vinha ao meu trabalho me ameaçar. Fui na Vilma [delegada da Mulher em Teresina]. Ela deu uma pressão nele e ele parou de me procurar. Apesar de nunca ter me batido, eu sei que ele não tem o gênio bom. Ele chegou a usar meu filho contra mim, o que achei inacreditável. Depois fui saber o que era alienação parental. Dizia para o menino que eu bebia e me drogava”, conta.
A gota d’água foi quando ele, o ex, ameaçou o atual namorado da vítima. “Ele disse que se me pegasse com o menino e o meu namorado da época, ele me dava uma surra e matava o cara. Não pensei duas vezes. Levei o áudio para a Vilma”, revela.
“Não existe esse negócio de ‘mimimi’”
Para a delegada Eugênia Villa, estudiosa da questão de gênero com foco no feminicídio de Castelo, a data é um dia de luta. “O 27 de maio foi instituído em dezembro de 2017, quando Margarete [Coelho (PP)] assumiu interinamente o governo. Ela encaminhou [a proposta] à Alepi, que foi logo aprovada”, lembra.
O caso de Castelo chocou o mundo. “Foi em alusão ao evento de Castelo, que foi o paradigma do Piauí, Brasil e mundo. É uma referência. Para nós, no Estado, foi paradigmático porque não havia relação interpessoal das vítimas e agressores. Geralmente, a agressão vem de alguém conhecido”, acrescenta Villa.
A situação levou a um trabalho para tipificar o feminicídio. “Isso colocou a polícia em uma situação de enfrentamento à dogmática jurídica, porque não havia jurisprudência. Nos amparamos na Convenção de Belém, um acordo internacional, para dizer que foi feminicídio. Além de uma fala de um dos menores, alegando que ‘não havia nenhum homem com elas’. Foi um cenário de tortura e de terror”, conta a delegada.
Eugênia acredita que os policiais evoluíram para o atendimento a estes casos. “Nós avançamos muito na investigação policial e na transparência de dados e estatísticas criminais. Das 20 mulheres assassinadas no Piauí em 2019, 12 foram na rubrica do feminicídio. Mais da metade das mulheres são assassinadas apenas pelo gênero. A polícia precisa se aperfeiçoar e ter intimidade com a perspectiva de gênero. Não existe esse negócio de ‘mimimi’, é preciso mostrar a verdade e estruturar a política de segurança de fato efetivo”, considera.
Briga de marido e mulher? Tem que meter a colher, sim!
Um ditado besta, calcado no machismo, pode ser anulado do vocabulário brasileiro. Tem que meter a colher, sim. Em muitos casos, o silenciamento de testemunhas leva às mortes por puro receio de um possível intrometimento na relação. Mas é importante lembrar que violência é indiscutível, independente de tudo.
Para Anamelka Cadena, que acabou de assumir a Diretoria de Gestão Interna da Secretaria de Segurança do Piauí, cargo compatível ao de subsecretária, muito mudou ao longo dos anos. “A avaliação dos procedimentos policiais, ainda no Departamento Estadual de Proteção à Mulher, mostra que os casos de violência ocorrem, em sua maioria, no âmbito familiar. A violência vem de pessoas íntimas”, analisa.
Mas o silêncio é um dos maiores problemas, mesmo com a existência do aplicativo “Salve Maria”. O silêncio também paira. Durante os discursos, isso é vislumbrado. Pessoas do entorno, como familiares e vizinhos, que percebem situações de violência, precisam denunciar”, pontua Anamelka.
Blitze em bares e palestras estão programadas em alusão à data. Inclusive na orientação de garçons quanto às denúncias. “Estamos com uma série de ações da Secretaria de Segurança para trazer o debate à tona, além das políticas públicas que existem. Além, é claro, da conscientização das pessoas. Vejo a carência que a população tem por uma falta de alcance ao conhecimento”, finaliza a delegada.