Maconhistas ignoram efeitos da erva no cérebro, diz Drauzio Varella

Maioria ignora os efeitos da maconha no cérebro, sobretudo no adolescente

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Chamar de maconheiros os usuários é considerado depreciativo. Maconhistas, preferem eles. Com a produtora Uzumaki, fizemos uma série sobre a maconha com o título de “Drauzio Dichava”, que já teve 4,5 milhões de acessos no YouTube, em dois meses. Fiquei surpreso com a repercussão e com falta de informação dos entrevistados sobre o mecanismo de ação e os efeitos colaterais da droga. A maioria acha que se trata de uma erva natural, que traz relaxamento, sensação de paz e percepção aguda da realidade, sem causar danos.

Alguns não sabem que o THC, o componente ativo, é absorvido nos alvéolos pulmonares e cai na circulação. A dependência química é desconhecida ou negada mesmo por gente que faz uso diário, há décadas. A perda de memória ao fumar é menosprezada até pela jovem que esquece uma ponta no cinzeiro da sala dos pais. E, pior, ninguém ouviu falar que o consumo na adolescência pode ter consequências nocivas e duradouras.

Diversos estudos, no entanto, mostraram que o impacto repetitivo da maconha no cérebro ainda adolescente é deletério. Interfere na memória, na atenção, na velocidade de processamento das informações e na concentração. A explicação está na vulnerabilidade do tecido cerebral na infância e na adolescência. O córtex pré-frontal, responsável por funções como julgamento, tomada de decisões e controle da impulsividade, só completa a fase de amadurecimento ao redor dos 25 anos de idade, muito mais tarde do que as áreas encarregadas do processamento das emoções.

O THC distorce a troca de informações entre os neurônios. A exposição frequente pode modificar de forma persistente a arquitetura das redes neuronais que coordenam a cognição, nelas incluídos o aprendizado, a atenção e a resposta aos estímulos emocionais. Em alguns adolescentes predispostos, essas alterações levam à compulsão que está na base da dependência química.

Evidências sugerem que o uso diário ou semanal por adolescentes, durante anos consecutivos, pode causar alterações neuropsicológicas que persistem além do período de intoxicação aguda. Vários estudos revelaram, de forma consistente, que os usuários crônicos têm resultados piores nos testes neuropsicológicos. Em alguns deles, a deficiência foi detectada mesmo depois de anos de abstinência.

A magnitude do déficit cognitivo será mais alta quanto maiores forem as quantidades consumidas, a frequência e a duração do consumo e também a precocidade da iniciação. Fumar maconha aos 30 anos é bem menos problemático do que fazê-lo aos 15. Para agravar, a maconha comercializada nas ruas tem concentração de THC quatro a cinco vezes mais alta do que a dos anos 1990. A diferença seria comparável à dos efeitos do álcool contido num copo de cerveja ou num copo de saquê.

A ignorância em relação a esses fatos é uma das consequências da clandestinidade. Que ajuda podemos prestar às crianças que começam a fumar, se elas o fazem às escondidas? Como lidar com o ímpeto de desafiar a proibição que lhes é imposta? 

Veja o que aconteceu com o cigarro. 

Nos anos 1960, cerca de 60% dos brasileiros com mais de 15 anos fumavam. Entre outras medidas, anos de informações transmitidas pelos meios de comunicação de massa e educação nas escolas fizeram as crianças entender que fumar está ligado às piores doenças. Hoje, a prevalência entre nós caiu para cerca de 10%.Fosse o cigarro mantido no silêncio da ilegalidade, teríamos conseguido resultados tão contundentes?

A maconha faz parte do universo dos jovens de qualquer classe social; mesmo os abstêmios têm amigos que fumam. Em certas fases da juventude o risco de uma filha ou filho experimentá-la é alto. Condená-los por ter curiosidade, necessidade de aceitação no grupo ou por cair em tentação vai ajudá-los em algo? Eles precisam de ensinamentos claros para entender que compostos psicoativos como o THC provocam efeitos colaterais, alterações neurobiológicas e podem causar dependência química.

Se ainda assim decidirem fumar, não é a repressão que os impedirá —nem será uma tragédia familiar. A maioria dos que experimentam na adolescência abandona o uso por conta própria ou fuma com intervalos de semanas ou meses. Maconha não é droga compulsiva como cigarro ou cocaína.

Desesperar-se porque a filha ou o filho “caiu no mundo das drogas” só por fumar maconha ocasionalmente é criar drama de novela mexicana.

Drauzio Varella

Médico cancerologista, autor de “Estação Carandiru”

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