BR: Com albergue, bar e restaurante, morador de favela vira empresário

Jamylli Marques da Cruz, 30 anos, já tentou ser modelo e atriz. Há um ano, resolveu olhar de forma diferente para a pequena cozinha

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MPB, na favela Chapéu Mangueira, não é apenas um estilo ou movimento musical. Significa Marmita Popular Brasileira, um dos tantos exemplos de empreendedorismo na esteira da pacificação das comunidades do Rio de Janeiro. Não se trata de uma grande empresa - como bancos e TVs a cabo - que resolveu estender seus serviços para o morro aproveitando o momento de maior segurança e aumento do poder de consumo. Mas uma ideia que se tornou realidade a partir do esforço e trabalho de um morador.

Jamylli Marques da Cruz, 30 anos, já tentou ser modelo e atriz. Há um ano, resolveu olhar de forma diferente para a pequena cozinha do imóvel que aluga no morro com o marido e tirar dali o sustento da casa. Oferece marmitas com pratos caseiros tanto para os trabalhadores do Chapéu Mangueira quanto para os vizinhos mais abastados do Leme, aos pés da favela, na beira da praia.

O prato mais barato custa R$ 10 - fígado e linguiça acebolados, carré, frango ou bife, tudo acompanhado de arroz, feijão, batata frita e salada. O mais caro, R$ 14. Diariamente, vende de 20 a 40 marmitas. Nos finais de semana, oferece comida para eventos. Uma ideia que começou com pouco dinheiro em caixa, sem geladeira, apenas um fogão de duas bocas e a coragem.

"O meu marido tinha me dado um livro com uma nota de US$ 100 dentro. Naquela época, o dólar valia bem menos que hoje. Eu tinha vendido mais uns 20 bolinhos de bacalhau, o que dava uns R$ 40. A gente começou essa empresa com aquele dinheiro, R$ 200. Hoje a gente sustenta a casa inteira", explica Jamylli, contando que as limitações acabaram, no fim das contas, ajudando a cozinhar pratos com qualidade.

"A gente fazia as compras todo dia porque não tinha nem geladeira para guardar. E isso se tornou uma característica nossa, de ter uma comida mais fresca. Hoje os peixes e as carnes ainda são comprados e feitos diariamente."

Os principais clientes da MPB de Jamylli estão logo em frente a sua cozinha. São turistas estrangeiros e estudantes que se hospedam no hostel Favela Inn, um empreendimento que oferece uma vivência de comunidade para jovens com pouco dinheiro. As diárias durante a baixa temporada custam R$ 35, enquanto na alta o preço sobe um pouquinho: R$ 55. O lucro é razoável para uma família de seis pessoas - a dona Cristiane Oliveira, o marido e os quatro filhos: R$ 3 mil mensais durante o ano e R$ 8 mil no verão.

Os grandes eventos que a cidade está recebendo e a segurança da favela possibilitam que Cristiane consiga ter mais hóspedes em momentos de menor procura. A empreendedora também trata de se qualificar. Aos 42 anos, voltou a estudar inglês para se comunicar melhor com quem chega.

"O desafio das comunidades é saber lidar com essa novidade (a pacificação e os turistas que chegam). Tem que falar inglês porque é a língua universal. Se você não se qualificar, fica mais difícil. Eu formalizei o hostel com a ajuda do Sebrae e tive curso de capacitação para lidar com as finanças. Unir o físico (o hóspede) ao jurídico (a empresa) é complicado", conta a empreendedora, que teve a ideia de abrir o hostel a partir de uma conversa com um amigo francês que conseguia turistas para ela fazer trilhas até o topo do morro.

"Antes já vinha muito estrangeiro aqui. Mas eles vinham para ver a degradação. A gente odiava, mas fazia alguns tours com eles. Aí veio a UPP e mudou tudo. Eu, se pudesse, não gostaria de caminhar numa favela. O hostel é literalmente no fundo da favela. O cara tem que querer se aventurar. Mas aí chega aqui, vê essa vista e já diz "Ah, beautiful", diverte-se Cristiane, que indica o Bar do David para os hóspedes que querem se divertir sem descer do morro.

O bar, localizado logo à direita de quem acaba de subir a ladeira Ary Barroso, é um concorrente - e vencedor - assíduo do prêmio Comida Di Buteco, que tenta valorizar os quitutes feitos nos pontos de encontro de todo o Rio de Janeiro. E atrai não apenas quem está hospedado no próprio morro, como turistas e moradores de toda a cidade desde sua inauguração, em abril de 2010, dez meses depois da instalação da UPP no morro.

"Mudou todo o conceito. A favela deixou de ser o patinho feio da cidade e virou ponto turístico. As pessoas agora têm orgulho de subir", conta o proprietário David Vieira Bispo, que emprega sete moradores do Chapéu Mangueira e chega a atender de 350 a 500 clientes por dia nos finais de semana. "Calculo que tenho pra lá de 40 pessoas envolvidas indiretamente no bar."

Os exemplos se multipicam e estão por todo o lado, embora o Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas) não tenha números específicos sobre o crescimento de novos negócios nos morros da cidade. No mesmo Chapéu Mangueira, há chaveiro, pet shop e academia de jiu jitsu, além de outros bares e restaurantes. A mesma realidade é verificada no vizinho Babilônia, no muito procurado Vidigal, no turístico Santa Marta, na imensa Rocinha, no bem localizado Cantagalo e em todas as outras 18 favelas da rica zona sul do Rio, a região onde morar nestas comunidades virou também uma grande oportunidade de negócio.

"O mau empreendedor diz que precisa de uma verba para montar o seu negócio. Hoje em dia, para abrir um negócio basta ter uma ideia e vontade. Você consegue começar praticamente sem nenhum dinheiro se você planejar", incentiva David. "Imagina se eu quisesse ter um negócio para 300 pessoas desde o início? Já estava falido. Tem que crescer conforme o seu público cresce."

Sem esquecer a sustentabilidade

Apesar de serem pequenos, os empreendimentos que estão sendo criados nas favelas muitas vezes também têm o tino de ingressar na onda do empreendedorismo mundial: a sustentabilidade. Se David e Jamylli tentam implementar o "desperdício zero", Cristiane trata de reutilizar materiais para garantir o conforto e a decoração de seu hostel.

No lugar de telhas de amianto (substância que causa danos à saúde), utiliza telhas de caixa de leite por sobre a laje que funciona como cozinha e sala de estar do Favela Inn. "Antes este local era muito quente. Bastava bater um sol e ninguém conseguia ficar aqui com tanto calor. A telha de caixa de leite não só protege da chuva como deixa aqui dentro mais agradável", explica Cristiane.

A sustentabilidade não para por aí. Também tem sabão feito do óleo de cozinha, tapete produzido com malote bancário, estante com caixa de frutas. E Cristiane também vende camisetas do hostel em embalagens de garrafa PET feitas por seus filhos. "Meus filhos passaram a ter uma visão diferente destes materiais. Para mostrar que lixo pode virar artesanato. Ou seja, nem lixo é."

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