Crédito no Brasil deve ficar mais caro e, sem dúvida, mais seletivo

A desculpa das empresas foi a mesma: necessidade de reestruturação do quadro de pessoal

Do lado dos bancos, o receio não é menor | Reprodução internet
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Brasília ? O vendedor Sérgio Antunes, 43 anos, anda ressabiado. Apesar dos sinais ainda positivos dados pelo mercado de trabalho, começou a sentir o incômodo de ver dois de seus amigos de longa data perderem o emprego nos últimos três meses. "Quando soube das demissões, fiquei preocupado. A desculpa das empresas foi a mesma: necessidade de reestruturação do quadro de pessoal", conta. Um dos dois amigos, que trabalhava em uma fábrica de autopeças, já se recolocou no mercado. O outro, contador, só ouviu não nas entrevistas às quais se submeteu em busca de uma vaga.

Foi justamente esse caso que acendeu o sinal de alerta de Antunes. Temeroso de que o desemprego possa bater à porta dele, avisou à família: nada de dívidas nos próximos 12 meses. É o tempo que ele acredita ser necessário para ter a ideia de como ficará a economia do país. A torcida dele é para que todos os ajustes necessários sejam feitos sem traumas, a fim de que os juros possam voltar a cair e ele, trocar o carro e, quem sabe, finalmente, dar entrada na tão sonhada casa própria.

A precaução do vendedor não é exceção. Como ele, boa parte dos brasileiros que foram às lojas e se empanturraram de dívidas, devido ao crédito farto, decidiu reduzir as compras. Por isso, dizem os especialistas, dificilmente o próximo presidente da República poderá contar com a força do consumo das famílias como mola propulsora do crescimento. "Esse modelo se esgotou. Agora, o país precisa de investimentos produtivos", diz Cláudio Porto, presidente da Consultoria Macroplan. O panorama da oferta de crédito no país é o tema da quarta reportagem da série Desafios de 2014, publicada pelo Estado de Minas.

Do lado dos bancos, o receio não é menor. O endividamento recorde das famílias, em meio ao fraco ritmo da atividade e à inflação alta, fez com que muitas instituições reduzissem a oferta de crédito, deixando a economia, na visão do ministro da Fazenda, Guido Mantega, com uma das pernas "manca". Apenas as linhas de financiamento de juros menores e de prazos longos, como o imobiliário e o consignado, parecem caber no orçamento dos brasileiros. Não à toa, em 2014 e 2015, as estimativas são de que o varejo terá o menor crescimento nas vendas em mais de uma década, em torno de 2,5% ao ano.

PROJEÇÕES As incertezas são muitas. Os bancos públicos, que, nos últimos anos pisaram no acelerador e ofereceram crédito à vontade, optaram por reduzir a velocidade de crescimento das operações. O menor reajuste do salário mínimo, de 6,78% em 2014, e as previsões menos otimistas para o mercado de trabalho ajudaram a consolidar tal quadro. A ordem é ser seletivo a fim de afastar o fantasma do calote.

Na avaliação de especialistas, se a expansão do saldo total de empréstimos e financiamentos em 2013 foi a menor em mais de uma década, nada indica que esse movimento de desaceleração vá se reverter neste ano e em 2015. Pelas projeções do Banco Central, o crédito nesse período desde avançar entre 13% e 15% ao ano, metade do crescimento observado no fim do segundo mandato de Lula, em 2010, de 30%.

A demanda menor por financiamentos não se restringirá às pessoas físicas. Também as empresas tendem a serem mais comedidas na hora de se endividarem. Além de trabalharem com um quadro de vendas contidas, os juros estão nas alturas, e àquelas que têm débitos em dólar vão sofrer mais, caso a disparada da moeda norte-americana se confirme, o que pode frear os investimentos produtivos de que o país tanto precisa. (VM)

Dívidas com juros mais elevados

Brasília ? Os consumidores que aceitarem comprar a prazo ou assumir outro tipo de dívida terão de arcar com juros cada vez maiores, pois o aumento da taxa básica da economia (Selic), que saiu de 7,25% em abril de 2013 para 10% em novembro, e que pode, no decorrer deste ano, chegar a 10,50% ou 11% anuais, será repassado pelos bancos à clientela. "A obrigatória subida da Selic para controlar a inflação terá como efeitos a retração do consumo, o esgotamento da capacidade de endividamento das pessoas físicas, o aumento da inadimplência e a maior dificuldade de tomada de crédito", observa Telmo Schoeler, sócio da Strategos ? Strategy & Management.

Nesse contexto, as encomendas do varejo à indústria tendem a ficar aquém do esperado, pois manter estoques elevados também custa caro. "A nossa avaliação é de que as vendas no varejo devem ser impactadas pelo menor crescimento da massa salarial real, pelo nível de confiança mais baixo dos consumidores, pelo aumento das taxas de juros reais e pelo ritmo moderado de crescimento do crédito", observa Aurélio Bicalho, economista do Itaú Unibanco. "Essas variáveis, em conjunto, sugerem que o avanço do varejo neste ano e em 2015 tende a ser menor que o visto em anos anteriores", emenda.

INFLAÇÃO Luiza Rodrigues, economista do Serviço de Proteção ao Crédito (SPC Brasil), nota que, desde o fim de 2013, os consumidores já demonstram dificuldade para manter as contas em dia, até mesmo as de menor valor. Ela aponta a inflação como um entrave para as finanças pessoais. "A inflação está prejudicando as pessoas de renda mais baixa, que geralmente têm dívidas de menor valor. Vale lembrar que estamos falando de dívidas com atraso há mais de 90 dias, o que mostra que as pessoas estão com dificuldade para pagar", diz. (VM)

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