Depois de controlar a inflação que atingiu 2.477% em 1993, o Plano Real enfrentou sua primeira crise internacional logo no ano seguinte ao lançamento da moeda, que completa 15 anos nesta quarta-feira - a do México. Contudo, nenhuma durante estes anos foi tão grave quanto à atual, do subprime. Embora o programa tenha gerado alguns efeitos colaterais, economistas concordam que ele inaugurou uma agenda de responsabilidade fiscal e de metas que possibilitaram melhores condições para amenizar os impactos das turbulências internacionais.
"Demos dois passos em um só: derrotamos a inflação e mostramos que o Brasil estava maduro para um novo modo de relação entre o governo e a sociedade, entre o estado e o mercado, mais democrático. Esses dois passos abriram o caminho para uma ampla agenda de reorganização do estado e da economia, cujos frutos a sociedade brasileira vem colhendo desde então", afirma o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que participou da elaboração do programa, quando foi ministro da Fazenda de Itamar Franco.
Segundo o ministro que sucedeu FHC na Fazenda, Rubens Ricupero, o Brasil já tinha feito seu "teste de estresse" durante os primeiros anos do Plano Real. "Uma parte do programa foi preparar os bancos para o novo tipo de ambiente sem inflação crônica acelerada. Naquele período (até 1997/1998), cerca de 400 instituições financeiras e bancárias quebraram. Isso tudo era esperado. Tudo isso que os americanos estão fazendo agora, estes testes de estresse, não chegamos a fazer igual, mas examinamos caso a caso e sabíamos quais bancos não iam resistir. Temos um sistema bancário intacto porque já tivemos a nossa crise", explica.
Outro episódio que fortaleceu a economia do País durante o real, em especial contra um colapso do sistema financeiro, foi a criação do Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional (Proer), em 1995. Em síntese, o plano dá poderes ao Banco Central de intervir em instituições particulares que estejam à beira da falência e representem um risco ao sistema - em moldes como ocorreram as intervenções do governo americano na AIG e Citigroup durante a atual crise.
Ainda em 1995, a crise do México mostrou que a situação brasileira era sensível. Os mercados emergentes eram vistos com desconfiança pelos investidores, que tiraram as aplicações feitas no País. O movimento de fuga levou o governo a adotar juros mais altos para tentar manter o capital. Em seguida vieram as crises da Ásia (1998) e da Rússia (1999), e com isso a taxa básica de juros alcançou 45% ao ano em março de 1999, enquanto o dólar se mantinha abaixo dos R$ 2, mesmo com a liberação total do câmbio.
"Uma das coisas que ajudaram o Brasil, além do setor bancário forte e regulado, foram as reservas internacionais, que só se tornaram possíveis porque no curso do período o Brasil abandonou o câmbio muito valorizado para acumular reserva", diz Ricupero em relação à decisão anunciada em 18 de janeiro de 1999, quando o governo instituiu o câmbio flutuante.
Embora admita os efeitos colaterais do real apreciado, Gustavo Franco, secretário adjunto de política econômica na época do lançamento do real e presidente do Banco Central entre 1997 e 1999, vê estabilidade como o maior legado do programa elaborado pela equipe econômica formada também por Persio Arida, André Lara Resende, Pedro Malan e Edmar Bacha, durante o governo de Itamar Franco.
"O Plano Real propriamente dito ficou para trás e deixou um legado duradouro de regras com relação à estabilidade. Isso se desdobrou em regras de conduta para o setor público e privado. Estes novos hábitos foram melhorando a saúde do organismo e ele foi ficando mais resistente a choques externos. Embora no começo as coisas tenham sido praticadas em uma octanagem diferente, era um momento de transição, de vencer a hiperinflação, na verdade é a mesma filosofia praticada até hoje. Isso é um dos aspectos mais interessante da vitalidade do plano", apontou.
Até mesmo quem vê pontos negativos no processo de implementação da nova moeda, concorda com o mérito do real de ter estabelecido bases para a atual economia brasileira. "Há uma ruptura na trajetória da participação do Brasil no comércio do mundo com o real (pela valorização da moeda nacional). Já no final de 1995 teve a crise mexicana, e passamos por uma fase de administração de crises internacionais que não tinham a ver com o Brasil. O mérito do plano foi ter conseguido alcançar a estabilidade", diz o assessor do ministro do Trabalho em 1994 e atual presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Márcio Pochmann.
Segundo Ricupero, a superação do risco de hiperinflação marcou uma inflexão no gráfico do desenvolvimento econômico do País, de uma curva descendente - em que o dia de amanhã era sempre pior que hoje e pior que ontem - para uma curva que começa a subir, mas ainda com muita coisa a fazer.
"A estabilização te dá base para poder ter um projeto nacional. Deste ponto de vista, o real desempenhou a função plenamente. Não é mais patrimônio do presidente Itamar Franco, nem do FHC, porque o fato de ter se mantido a diretriz básica da economia no governo Lula tornou o real e a estabilização um patrimônio coletivo. O real é um pedestal. Para construir o monumento precisamos resolver outras questões, como a má qualidade das instituições públicas e da educação", comenta.
Exatos 15 anos após o lançamento de um dos planos econômicos mais bem sucedidos da economia do País, documentos das raízes do real mostram os desafios que permanecem. "O Brasil só consolidará sua democracia e reafirmará sua unidade como nação soberana se superar as carências agudas e os desequilíbrios sociais que infernizam o dia-a-dia da população" e "as contas públicas só serão acertadas se as forças políticas decidirem caminhar com firmeza nessa direção, deixando de lado interesses menores. (...) É isto que a sociedade brasileira espera de suas autoridades", afirma o Programa de Ação Imediata, que começou a preparar o terreno para o Plano Real em 1993.