Gibões, chapéus de couro, sanfonas e forró executado como um lamento deram a tônica no velório do sanfoneiro, compositor e cantor Dominguinhos, 72, que morreu em São Paulo na última terça-feira, depois de uma dolorida guerra contra o câncer do pulmão. O corpo dele chegou a Recife às 3h30m da quinta-feira e do Aeroporto dos Guararapes seguiu para a Assembléia Legislativa, onde foi velado no plenário, sob olhar atento de fãs, parceiros musicais e soldados em traje de gala da Polícia Militar.
Uma hora foi consumida para transportar o corpo pelos 12 quilômetros que separam o Palácio Joaquim Nabuco do cemitério Morada da Paz (localizado no município de Paulista, vizinha de Recife), desfilando em carro aberto do Corpo de Bombeiros. No cemitério, o caixão foi conduzido por populares, que entoavam seus principais sucessos. As cantorias quebraram o clima de tristeza. Entre os amigos de Dominguinhos que participaram da cerimônia fúnebre estavam os cantores Elba Ramalho e Geraldo Azevedo. Na principal via de acesso ao cemitério, a PE-15, centenas de pessoas passaram a tarde esperando o cortejo, que só passou no anoitecer. O sepultamento teve início depois das 18h3Om.
Bolo no congelador
Às 8h, já era grande o número de pessoas em fila na calçada do Palácio Joaquim Nabuco. Elas queriam dar o último adeus ao sanfoneiro, que além de músico e instrumentista singular, apontado por Luiz Gonzaga como seu herdeiro musical, era tido como uma pessoa extremamente generosa, que democratizava sua sanfona até mesmo para aqueles que, ainda desconhecidos, buscavam nele um apoio e caminho.
? Estamos órfãos. Primeiro foi Luiz Gonzaga, agora Dominguinhos. O mais incrível é que todos o conhecem pela sua obra e pela genialidade. Mas era um ser humano especial, maior do que o gênio e a sua arte. Ele era muito generoso, uma pessoa completa não só como artista ?, afirmou o pesquisador Paulo Wanderley Tomás, uma das maiores autoridades na música regional sertaneja, grande colecionador da obra de Gonzaga e Dominguinhos, de quem se tornou amigo. Ele não conseguiu conter o choro durante a cerimônia fúnebre. O colecionador é tão fanático pelo cantor que conserva no freezer de casa até uma fatia do último bolo de aniversário do artista.
Apesar do grande número de pessoas querendo se despedir do artista, o velório ocorreu sem transtornos. As filas foram organizadas do lado de fora da Assembléia, e ficaram sempre em movimento. Ele teve o corpo encomendado pelo padre Josenildo Tavares, coordenador das Pastorais da Arquidiocese de Olinda e Recife. Durante a cerimônia litúrgica, parceiros do artista executaram várias de suas músicas, entre elas "De volta para o aconchego", "Amizade Sincera" e "Só quero um xodó".
Impasse na família
Até o fim da manhã, ainda não se sabia onde seria o sepultamento do corpo de Dominguinhos. Houve dificuldade da família - ele casou três vezes - em se entender quanto ao local do enterro. Há alguns anos, ele confidenciara que queria ser enterrado na cidade de Garanhuns, a 230 quilômetros de Recife. Foi ali que ele nasceu e onde deu início à sua carreira. Foi na cidade também, no agreste pernambucano, que teve início a amizade dele com Gonzaga.
Prefeito de Garanhuns, Isaías Régis (PTB) chegou a preparar o funeral na cidade, onde prometeu erguer um mausoléu para o artista. Mas segundo a filha de Dominguinhos, Liv Morais, o desejo de quase 20 anos não era mais o mesmo. Ela contou que ele pretendia morar em Pernambuco - estava radicado em São Paulo - e que lhe dissera que pretendia ser sepultado em Recife ou Fortaleza.
No início da tarde, o impasse acabou: a última mulher, Guadalupe Mendonça, anunciou que o local escolhido fora o Cemitério Morada da Paz. Eles viveram juntos por 38 anos, e nem a separação conseguiu acabar com a amizade do cantor com a pernambucana, que esteve perto dele em seus momentos finais.
Na quarta-feira, centenas de sanfoneiros se reuniram no bar Arriégua, onde costumavam se encontrar com Dominguinhos. Ele dizia que o encontro com seus amigos para tocar forró tinha efeito maior contra o câncer do que as doloridas sessões de quimioterapia. Todos os artistas relatavam histórias de solidariedade e grandeza humana do artista.
Na noite dessa quinta, outro tributo ao sanfoneiro ocupou o Chevrolet Hall, com participação de Elba Ramalho, Geraldo Azevedo e outros amigos do músico. O show estava programado para ajudar nas despesas com o tratamento do câncer, mas agora a renda será revertida para a família, e pagamento do hospital onde ele passou os últimos seis meses da vida.
Amigos reverenciam o músico
? Me aproximei de Dominguinhos em 1968. Eu começando nessa carreira e ele já era um grande sanfoneiro ? disse Joaquinha Gonzaga, sobrinho de Luiz. ? Um homem de fala mansa, calmo, grande figura humana. Para ele não importava se o artista era pobre ou rico, desconhecido ou famoso, ele tratava todos da mesma forma. Ajudou muito meu tio Gonzagão em muitas músicas, porque era um grande instrumentista.
Um dos fundadores do Quinteto Violado, conjunto dedicado a música regional com 40 anos de estrada, Marcelo Melo também elogiou a simplicidade do artista:
? Convivi muito com ele. No início do Quinteto, ele viajava conosco e até chegou a dirigir o ônibus do conjunto para nós. Era o máximo da genialidade musical e grande figura humana ?, afirmou.
Outro artista, Ivan Ferraz - desconhecido no centro sul, mas com muita atuação na música regional - afirmou que o artista tinha uma característica muito especial:
? Ele sempre estendeu a mão para quem estava começando. Eu não sou um cantor famoso, mas ele fez questão de participar do meu disco "Vinte arrasta pés" ?, disse Ferraz.
O governador de Pernambuco Eduardo Campos (PSB) esteve no velório, onde fez um discurso emocionado, lembrando que o artista transportou a música regional do início do século passado para o século XXI. Ele lembrou que, mesmo doente, Dominguinhos seguiu trabalhando, mas que depois enfrentou um sofrimento insuportável, provocado pela doença.
? Felizmente os artistas têm esse poder divino de deixar a obra e de estar sempre presentes através de sua música ?, disse o governador.