'Fotografei prisão de mãe com bebê e fui obrigado dar meu celular'

Após tirar fotos, repórter foi obrigado a entregar celular

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Monica Aparecida de Souza frequenta as ruas de Pinheiros desde os sete anos de idade e, talvez, já tenhamos nos esbarrado pelo bairro na capital paulista - ela, como pedinte de dinheiro e comida, e eu como jornalista da BBC. Talvez ela já tenha me abordado alguma vez e eu, apressado (desatento, insensível, indolente?), tenha respondido sem sequer baixar os olhos: "Hoje não tenho, moça".

Na sexta-feira, às 10h, Monica estava de novo em Pinheiros. Dessa vez, nosso encontro foi insólito e conturbado: ela com a filha bebê no colo, amamentando, cercada por quatro viaturas e dez policiais militares, detida após pedir dinheiro em frente a um supermercado. Eu, repórter, com o celular apreendido pelos PMs e sendo levado para a delegacia após tentar registrar a operação policial em fotos e vídeos.

O dia de Mônica começou às 6h, quando acordou no barraco onde mora na favela Alba, zona sul paulistana. Vestiu Raissa, sua filha de um ano e oito meses, e pegaram um ônibus com destino ao Largo da Batata. Desceu e caminhou até a calçada em frente ao supermercado Padrão, na rua Fernão Dias, número 679, onde diariamente se senta para pedir dinheiro.

"Foi a primeira vez que levei a Raíssa. Normalmente venho sozinha", conta. Na maioria dos dias, Monica deixa a criança com a avó e com o irmão menor, de três anos. "Mas ela não gosta de ficar em casa, ela chora muito", conta ela, que tem 20 anos, é baixinha e de corpo franzino.

Não vi o que aconteceu momentos depois das duas chegarem ao supermercado, porque provavelmente eu ainda estava no metrô e chegando à estação Faria Lima, bem ao lado do supermercado Padrão. Mas vou tentar reconstituir com base em depoimentos dos envolvidos na história.

Monica começou a pedir doações em frente ao estabelecimento. Conseguiu fraldas, papel higiênico e uma lata de Mucilon, tudo guardado em sacolas plásticas.

O segurança do supermercado, Arnaldo Rocha Ribeiro, conta que pediu para que ela se afastasse do local. "Era o terceiro dia seguido que ela aparecia. Nosso mercado é frequentado por senhoras de idade, que até doam para os pedintes, mas ficam com medo", diz ele, há quatro anos no cargo.

"Falei que ela estava atrapalhando meu trabalho, mas ela se descontrolou", conta Ribeiro. Segundo ele, Monica lhe deu um tapa em seu rosto e o xingou. Ela nega a agressão, e diz que ele a ameaçou: "Eu fiquei muito nervosa porque ele disse que iria chamar o Conselho Tutelar para tirar minha filha de mim."

Por sua vez, o vigilante contesta a ameaça: "Quero o bem da criança, nunca falaria isso", afirma. Horas depois, por telefone, ele me disse que não faria exame de delito, procedimento que talvez pudesse provar que houve de fato uma agressão. "Tenho outras coisas a fazer, ficar com meu filho. Vamos deixar essa história para lá."

Um carro da Polícia Militar passava pela rua. A agente Letícia Freitas foi até Monica para tentar amenizar a discussão. Depois, na delegacia, a policial também relatou ter sido xingada: "Filha da puta, vagabunda, se acha gostosona só porque tem uma arma na cintura".

Monica confirma os xingamentos. "Peço desculpas à policial, sei que errei. Mas eles estavam ameaçando me prender e tirar minha filha. Eu não tinha feito nada".

A funcionária pública Juliana Benvenutti, de 33 anos, presenciou esse momento. "A Monica estava muito nervosa, mas não agrediu ninguém, eu tentava acalmá-la", diz. "O que vi foi uma mãe desesperada de medo de perder a filha. Sou mãe também e entendo o que ela passou."

Mais ou menos neste momento eu passei pela rua Fernão Dias, indo para a redação da BBC News Brasil.

'Coloca sua senha ou te prendo'

Quatro carros da Polícia Militar estavam em frente ao supermercado Padrão e, até onde contei, dez policiais cuidavam da ocorrência de Monica e sua filha de um ano e oito meses. Várias pessoas também acompanhavam a cena.

A jovem estava sentada na calçada, com Raissa em seu colo. Cercadas por policiais, as duas choravam. A mãe dizia que não iria entregar sua filha nem iria à delegacia - a criança parecia assustada na confusão. Não vi agressões de nenhum lado.

Como cidadão, tenho direito de gravar ou fotografar ações da polícia, sejam legais ou não. Como repórter, tenho curiosidade em saber o desfecho de histórias que pipocam na minha frente: por isso, ao ver vários policiais cercando uma mulher com uma criança no colo, decidi ficar para ver o final.

Comecei a fotografar com meu celular quando Monica e a filha foram levadas à viatura. Pessoas que assistiam à cena demonstraram certa indignação. "Ela só estava pedindo", gritou uma mulher. A funcionária pública Juliana Benvenutti resolveu acompanhar a família. Tentei gravar um vídeo, mas um policial puxou meu braço e impediu.

Neste momento, quatro ou cinco agentes me cercaram, perguntando por que eu estava gravando a cena. Respondi que tenho esse direito, sou repórter e mostrei meu crachá da BBC, no peito.

Pediram meu RG, entreguei. Pediram meu celular, recusei. Repeti minha profissão. Disse que não tinha feito nada demais a não ser registrar uma ação policial, o que a lei permite a qualquer cidadão.

O tom dos policiais subiu. Um deles afirmou que me levaria para a delegacia como testemunha de um crime. Perguntei qual crime. Ele disse "desacato". Aleguei que não tinha visto nenhum desacato, apenas uma detenção de uma mulher com seu bebê. Então, ele mudou a retórica, dizendo que eu era uma testemunha de que a PM tinha agido corretamente.

No meio da confusão, consegui enviar um áudio por WhatsApp e uma foto para meus colegas de redação. Entreguei o celular ao PM.

O policial perguntou qual era a senha para desbloquear o aparelho. Recusei, dizendo que ele não tinha o direito de invadir minha privacidade naquele momento. Ele me ameaçou: "Ou você coloca a senha ou vai preso por desobediência". Coloquei a senha. "Fica tranquilo, só vou ver se seu celular não é roubado", ele disse, e levou o aparelho para a viatura.

Uma policial começou a me gravar com um celular. Disse algo como "esse é o repórter Leandro Machado, da BBC, que se recusou a ser testemunha..."

A Polícia Militar de São Paulo ficou com meu celular por cerca de 30 minutos sem que eu soubesse o que estava sendo feito com ele. Não apagaram nenhum arquivo, constatei depois.

Já na viatura, perguntei se eu poderia ligar para a BBC para relatar o que estava acontecendo. Negaram.

'Você pode ser preso por falso testemunho'

Fui levado à 14º Distrito Policial, onde encontrei Monica, Raissa e Juliana. No caminho, um sargento da PM explicou: "Leandro, você tem todo o direito de nos gravar, e nós podemos te levar como testemunha".

Ao chegar, uma policial militar comentou com um colega: "Tem que ser assim, dar exemplo. O cara gravou, leva para a delegacia".

Uns dez minutos depois, ainda sem celular, fui chamado pela delegada Camila de Camargo Ferraz. Ela se apresentou e disse, de supetão: "Você pode ser preso em flagrante por falso testemunho". Fiquei com cara de tacho. Como assim? Preso? Nem testemunhei ainda. Ela fez uma pausa dramática e completou: "Você pode ser preso em flagrante, caso o que você fale aqui não seja corroborado pelos fatos".

Momentos depois, ouvi a cena se repetir com a funcionária pública Juliana Benvenutti, também apontada como testemunha.

Para Monica, a delegada afirmou: "Se você não assinar (o Termo Circunstanciado), vou te prender em flagrante".

A delegada então mostrou meu celular, pediu que eu o desbloqueasse novamente e mostrasse o álbum de fotos. Havia três imagens da ocorrência. "E mandou alguma coisa no WhatsApp?", perguntou. Apontei as fotografias que enviei pelo aplicativo à redação. Ela abriu outras conversas. Não viu nada além de imagens do meu cachorro. Devolveu o aparelho.

Prestei depoimento e fui liberado depois de três horas na delegacia.

Em nota, a Secretaria da Segurança Pública afirmou que não houve "nenhum erro na abordagem", mas que a Corregedoria "está à disposição do repórter para o registro e apuração dos fatos".

As vítimas dessa história

Monica estudou só a primeira série do ensino fundamental e, por isso, tem dificuldade para ler e escrever. Começou a pedir dinheiro em Pinheiros quando tinha sete anos, junto a amigos da favela. "Conheço bastante o bairro e por isso sempre volto aqui", diz ela, detida pela primeira vez na vida.

Sua mãe, desempregada, nunca teve muitas condições de criar os três filhos. Dois deles, irmãos de Monica ainda adolescentes, vivem em abrigos públicos. Nos últimos anos, a família perdeu tudo (duas vezes) em incêndios que consumiram parte da favela onde vivem há décadas.

Monica cria os dois filhos praticamente sozinha, pois os pais não têm muito contato. Diz que nunca ganhou Bolsa Família ou qualquer benefício do governo. O garoto mais velho frequenta a creche, mas Raissa ainda está na fila de espera, conta. "Fiz o cadastro para ela há mais de um ano, mas acho que nesse ano ainda consigo", diz a jovem, enquanto amamenta a criança na delegacia. Contatada, a Secretaria Municipal de Educação não se pronunciou até a publicação desta reportagem.

O Conselho Tutelar foi chamado pela delegada. Quatro conselheiras conversaram com Monica. "A gente não vai tirar sua filha, menina. A gente vai te levar para o serviço social, para você dar um jeito na vida de vocês", disse uma conselheira. "Se você continuar assim, sua filha no futuro vai estar igual a você. Ela vicia na rua."

Monica foi acusada pela polícia de submeter sua filha a vexame, ameaça, desacato a uma policial e lesão corporal por ter dado um tapa no vigilante do mercado. "Só quero voltar para casa e ficar com minha filha", me disse Monica, ao entrar no carro do Conselho Tutelar com Raissa. Pedi seu telefone ou algum contato para nos falarmos depois. Ela não tem. "Vai lá na favela ou gente se vê por aí", diz.

No documento da polícia que relata a ocorrência, as vítimas dessa história são o segurança e uma policial militar.

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