Cenas de violência policial como as que marcaram o protesto contra o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) no Centro do Recife, no último sábado (22), chegam sempre rapidamente ao conhecimento do fotógrafo Alex Silveira.
Vítima da mesma arma supostamente não letal - espingardas semiautomáticas calibre 12, que disparam balas de borracha ou balim - Silveira perdeu a visão do olho esquerdo durante a cobertura de uma manifestação de professores na capital paulista em maio de 2000.
"Fiquei muito triste com isso que aconteceu no final de semana, com os rapazes em Pernambuco. Por razões óbvias, essas notícias sempre chegam a mim", conta.
A relação imediata entre os casos se dá não apenas por conta da automática empatia com a dor e o trauma ocular. Há 20 anos, o fotógrafo briga na Justiça para conseguir ser indenizado pelo governo paulista.
“É uma coisa que está acontecendo há mais de 20 anos e que o estado não assume a culpa. Precisou mais duas pessoas levarem um tiro no rosto para que se veja que está tudo errado? ”, questiona o profissional.
As imagens dos dois homens com os rostos ensanguentados em Pernambuco, embora representem de forma isolada o resultado das recentes manifestações contra o governo federal em todo o país, refletem a espiral do comportamento das forças de segurança no Brasil e na forma como a Justiça trata as vítimas da violência promovida pelo estado.
No caso de Silveira, em 2014, a Justiça paulista alterou a sentença anterior, que condenava o estado a pagar indenização de 100 salários mínimos, e considerou o fotógrafo culpado pelo ferimento.
O tiro de bala de borracha, disparado por um policial militar durante manifestação na Avenida Paulista, tirou mais de 85% da visão do olho esquerdo do fotógrafo. À época, ele cobria o ato pelo jornal "Agora SP".
Por conta da última decisão, Silveira entrou com recurso no Supremo Tribunal Federal em maio de 2019.
O caso, que deve voltar à pauta do STF na próxima quarta-feira (9), começou a ser julgado em agosto do ano passado, e o fotógrafo recebeu voto favorável do relator, o ministro Marco Aurélio Mello. Entretanto, o julgamento foi interrompido após o ministro Alexandre de Moraes pedir mais tempo para análise.
Requisito para o recurso ser aceito no STF, o caso é de repercussão geral, ou seja, a decisão dos ministros deverá ser seguida para situações semelhantes no país. Uma delas é a do fotógrafo Sérgio Silva, que também perdeu um olho cobrindo um protesto em São Paulo.
Embora o processo seja focado em profissionais de imprensa, o resultado também poderá ser aplicado para casos como os que ocorreram em Pernambuco.
"Espero que o pouco que eu possa contribuir, por tudo isso que passei, que todo mundo, pelo menos, não tenha que ficar esperando 20 anos para receber indenização por um erro do estado", afirma ele.
A expectativa de Silveira é a de que o resultado positivo possa assegurar não apenas uma reparação financeira individual, mas garantir, de alguma forma, que nenhuma outra vítima da truculência institucional tenha que aguardar mais de duas décadas para conseguir indenização.
"Espero, sim, ser restituído, porque nada vai restituir minha visão. Essa é uma condenação que eu vou ter para o resto da minha vida. Eu perdi minha visão. Então, independente da reparação, não vai melhorar a minha visão. Perdi, acabou."
"Espero, principalmente, que ninguém mais seja culpado por levar um tiro, porque isso está contradizendo até a lei da física, se você parar para pensar."
'Eu me nego a me aposentar por invalidez'
Silveira revela que o comprometimento da visão provocou um impacto direto na sua carreira, afetando inclusive sua forma de contratação.
"Já passei por muita coisa. É óbvio que eu tive uma perda financeira absurda. Não fui empregado carteira assinada nunca mais na vida", relata.
Apesar dos incontáveis prejuízos, conta que foi aprendendo a se adaptar e abrindo outras frentes de trabalho, principalmente na área do meio-ambiente, na qual já atuava e tinha intimidade com a temática.
Nos últimos anos, depois de duas temporadas trabalhando na Amazônia, ele retornou ao Rio Grande do Sul e atualmente é aluno do curso de oceanologia.
"Não se desprende do que eu já faço. Tem a ver com meio ambiente. Eu já trabalhava com isso em expedições cientificas e é uma forma de eu estar entrando mais", explica.
O fotógrafo afirma que a pandemia rareou ainda mais a oferta de trabalho. Apesar dos entraves físicos e econômicos, ele rechaça qualquer possibilidade de abreviar sua trajetória profissional.
"Estou dando meu jeito porque não posso desistir. Vou desistir? Não, vou, não quero. Eu não sou um inválido. E eu não me sinto um inválido, apesar a situação ter me invalidado bastante. 10% de visão em cada olho para uma pessoa que vive disso é complicado, né?", afirma.
"Eu me nego a me aposentar por invalidez. Não me acho uma pessoa inválida. Seria injusto comigo mesmo, por causa da minha história, por tudo que corri atrás para conseguir. Não vou aposentar, por invalidez não, nunca. Pelo menos não ainda, só se a visão piorar muito e eu não tiver mais condições mais."