O ano era 1919. Em todo o Brasil, milhares de pessoas ainda choravam por parentes e amigos mortos durante a pandemia da gripe espanhola, que atingiu o pico no ano anterior. O mundo acabava de sair da Primeira Guerra Mundial e a tristeza, o rancor e o medo que assolaram os brasileiros se transformaram numa explosão de alegria durante os quatro dias de festa que ficaram conhecidos como "o Carnaval do fim do mundo". Conteúdo reproduzido do site Uol.
A gripe espanhola vitimou cerca de 50 milhões de pessoas ao redor do globo. No Brasil, pesquisadores estimam que 35 mil pessoas morreram da enfermidade, provocada pelo vírus H1N1. Somente no Rio de janeiro, que era a capital do País na época, foram mais de 15 mil mortos.
E foi justamente na Cidade Maravilhosa que surgiu o movimento que tornaria o Carnaval daquele ano uma festa de revanche, de vale-tudo, uma catarse coletiva, como se todos acreditassem que não haveria amanhã.
"O Brasil era um país atrasado, na periferia, com 30 milhões de habitantes e profundamente desigual", explica o jornalista e pesquisador David Butter, autor do livro De Sonho e de Desgraça: o Carnaval Carioca de 1919. Em torno de 1 milhão de pessoas habitavam o Rio, uma cidade em transformação, que desde a década anterior vinha de um processo de reforma urbana, que modificou demais a cidade. Por causa dessas mudanças, muitas pessoas tiveram que ser desalojadas de suas casas e o clima de conflito social era evidente.
"Uma sociedade desigual, com chagas muito grandes na questão da saúde, uma cidade mergulhada na sujeira e acostumada às epidemias. Sem um esboço sequer de uma rede de saúde para atender a população no caso de uma emergência sanitária".
A sociedade ainda vivia um aumento da agitação operária, com reivindicação de direitos e avanços de grupos que pleiteavam uma transformação mais radical, como os anarquistas. Somado a isso, ainda havia uma profunda crise econômica assolando a população, agravada pela Primeira Guerra Mundial. Com a chegada da pandemia, em setembro de 1918, a capital entrou em colapso. Estima-se que cerca de 60% da população adoeceu. Comerciantes, prestadores de serviço, trabalhadores autônomos, todos os segmentos foram atingidos. Os hospitais não tinham leitos suficientes e os cemitérios também não davam conta da demanda. Muitas pessoas morriam em casa e os corpos eram deixados nas ruas.
"Foi um cenário verdadeiramente apocalíptico, que atingiu com muita força cidades como São Paulo, Porto Alegre, Campinas, Salvador, mas, principalmente, o Rio de Janeiro, onde as moradias eram muito próximas umas das outras".
Em novembro de 1918, com o arrefecimento da pandemia a população sai às ruas pela primeira vez para celebrar o fim da guerra. É nesse momento que os blocos e grupos carnavalescos, que perderam muitos membros para a pandemia, começam a se preparar para a retomada do Carnaval.
Nesse período começam a surgir eventos pré-carnavalescos, chamando as pessoas para celebrarem a vitória sobre a guerra e sobre a gripe espanhola. Alguns bailes são realizados, o medo começa a ser vencido e a empolgação da população começa a crescer. Era o "esquenta" para a festa que marcou o início do século 20.
"O Carnaval que se anunciava já vinha com uma expectativa de descarga, com um discurso de superação, de virar a página", afirma Butter, lembrando que, além da guerra e da gripe espanhola, o Rio de Janeiro já vinha registrando Carnavais esvaziados nos anos anteriores. Por questões econômicas causadas pelo conflito mundial e também por fenômenos climáticos que impediram a saída de ranchos e grupos das sociedades carnavalescas da época.
Obscenidade súbita
O "Carnaval do fim do mundo" começou no primeiro dia de março. O escritor Nelson Rodrigues era criança quando a festa aconteceu. Nos anos 1960, ele escreveu duas crônicas sobre o assunto, incluídas no livro Memórias: A menina sem estrela. Segundo publicou o jornal A Noite na época, a folia levou cerca de 400 mil pessoas à região central do Rio de Janeiro. "E tudo explodiu no sábado de Carnaval.
Desde as primeiras horas de sábado, houve uma obscenidade súbita, nunca vista, e que contaminou toda a cidade. Eram os mortos da espanhola — e tão humilhados e tão ofendidos — que cavalgavam os telhados, os muros, as famílias. Aquele Carnaval foi também, e sobretudo, uma vingança dos mortos mal vestidos, mal chorados e, por fim, mal enterrados", escreveu Rodrigues.
Outros cronistas também apontaram o Carnaval de 1919 como sem precedentes também para padrões comportamentais. Houve recorde nos atendimentos pela polícia com registros de crianças desaparecidas, queixas de assédio sexual e crimes violentos, incluindo estupros.
Na opinião de Butter, porém, a ideia de uma mudança radical no comportamento da sociedade por conta da folia é controversa. Ele explica que, apesar de uma certa liberdade crescente, que começava a refletir na moda feminina e para jovens, já havia a estigmatização de mulheres no Carnaval. O machismo imperava. Crimes sexuais nesse período eram justificados pela participação da mulher em blocos e ranchos.
As grandes sociedades, que eram o foco do Carnaval, eram formadas por multidões predominantemente masculinas. As mulheres vinham em cima dos carros de crítica, como eram chamados os carros alegóricos. A participação delas era restrita e perigosa. "Na visão de Nelson Rodrigues, a festa trouxe uma mudança urbana, social, sexual. Mas ao se examinarmos os registros contemporâneos, dados e fatos, no pior e no melhor, era a mesma sociedade que estava ali. Só que numa escala tremenda e com um senso de alívio e liberação. Na minha visão, o Carnaval de 1919 foi um grande palco para as transformações que já estavam ocorrendo".
Esse sentido de liberação se refletiu em convites para os grupos carnavalescos, propagandas, canções de Carnaval, fantasias. No domingo, o jornal Gazeta de Notícias celebrou o triunfo da festa. "O entusiasmo popular excedeu ontem toda a expectativa", dizia a capa da publicação.
Em uma marchinha composta na época, a letra escancarava a vitória sobre a morte: "Não há tristeza que possa Suportar tanta alegria. Quem não morreu da espanhola Quem dela pôde escapar Não dá mais tratos à bola Toca a rir, toca a brincar".
Comparação com 2023 O jornalista afirma que a comparação do que ocorreu em 1919 com o que viveu o Brasil dos anos 2020 deve ser cuidadosa. Apesar do País atualmente ainda apresentar muitos problemas iguais, como o abismo entre classes e um machismo estrutural evidente, o Brasil do início do século 20 era muito diferente. A ciência ainda engatinhava no que se refere ao tratamento de doenças e controle de endemias e sofria com a falta de infraestrutura hospitalar e urbana. Os brasileiros não contavam, por exemplo, com uma divulgação de notícias eficiente, pois nem havia rádio na época.
"Da mesma forma que a gente tenta olhar para o Carnaval de 1919, no futuro a gente vai olhar para o Carnaval 2023 e fará leituras sobre o que essa festa significou, dar um sentido sobre tudo o que a gente passou como sociedade. Pandemia, violência política, problemas estruturais. Em 2023 será o primeiro Carnaval 'cheio', sem restrições, em todo o País, como foi em 1919. E ele será objeto de estudo no futuro", comenta Butter.