DANIELE MADUREIRA
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - O próximo dia 1º de abril marca a mudança de comando de uma das gigantes do vestuário global: a Inditex, dona da Zara, volta a ser guiada por um membro da família fundadora. Entra Marta Ortega, 38 anos, filha caçula do criador da Zara, Amancio Ortega. Sai Pablo Isla, 58, o executivo que esteve à frente da companhia nos últimos 11 anos, período em que o valor de mercado da Inditex saltou seis vezes, para cerca de 71 bilhões de euros.
O mercado ficou apreensivo com a mudança de controle, anunciada em 30 de novembro do ano passado. Naquele pregão, as ações da Inditex na Bolsa de Madri recuaram mais de 6%. Desde o anúncio até o último dia 4, os papéis da companhia acumulam perda de 27% - período em que o Índice Geral da Bolsa de Valores de Madri caiu 6,2%.
A grande dúvida é se Marta Ortega, que trabalha na empresa há 15 anos, mas ocupando uma posição discreta, vai dar conta de conduzir o grupo, que passou por duas gestões vencedoras: a do seu pai, Amancio Ortega (que hoje, aos 85 anos, se dedica mais ao mercado imobiliário, por meio do family office Pontegadea), e de Pablo Isla, que já liderou por duas vezes o ranking dos melhores executivos do mundo, da Harvard Business Review.
O desafio é ainda maior neste momento. Embora a empresa tenha conseguido, durante a pandemia, redirecionar as vendas das lojas físicas para o canal online, com a guerra entre Rússia e Ucrânia, as vendas no leste europeu ficam comprometidas. A região é expressiva para a companhia: ao todo, o grupo soma 502 lojas só na Rússia. Na Polônia, principal destino dos refugiados no conflito, a Inditex tem 233 pontos, quase tanto quanto na França, onde soma 270 lojas.
Neste sábado (5), a companhia enviou um comunicado à CVM (Comissão de Valores Mobiliários) espanhola, informando a suspensão das suas operações na Rússia. "A Inditex anuncia que, nas atuais circunstâncias, não pode garantir a continuidade das operações e condições comerciais na Federação Russa e que o grupo está pausando temporariamente suas operações nas 502 lojas (das quais 86 são Zara) e online no país".
Segundo a companhia, a Rússia responde por cerca de 8,5% do lucro operacional (Ebit) do grupo no mundo. No país, emprega mais de 9 mil pessoas, a quem promete "desenvolver um plano de apoio especial a partir de agora."
Grupo tem mais lojas na Ucrânia do que no Brasil
No leste europeu, a principal marca da Inditex não é Zara, mas a Bershka, de moda jovem, além de Stradivarius, de moda feminina. Uma mensagem na página da Zara na Ucrânia, onde a Inditex tem 79 lojas, diz: "Devido à situação atual, as compras online estarão temporariamente indisponíveis e as lojas permanecem fechadas. O prazo de devolução será prolongado para 30 dias após a abertura das lojas".
Para se ter uma ideia da importância do leste europeu, no Brasil, são apenas 54 pontos de venda - 46 Zara e oito Zara Home.
A presença restrita torna a empresa muito menos expressiva no país que as grandes do vestuário nacional: as brasileiras Renner (635 lojas, sendo 104 Youcom e 119 Camicado) e Riachuelo (358 pontos de venda, sendo 25 Carter's e 6 Casa Riachuelo), e a anglo-holandesa C&A (308 lojas). No começo do ano passado, a empresa anunciou o fechamento de sete lojas no país, em uma adequação às vendas online.
No Brasil, a Zara se posicionou como uma marca para classe média alta. Não necessariamente devido ao mix de produtos, mas sim por conta dos custos de importação, que colocam os preços das roupas, sapatos e acessórios um degrau acima dos praticados pelas rivais C&A, Renner e Riachuelo.
Na opinião do consultor em varejo Alberto Serrentino, da Varese Retail, a Zara tinha planos mais ambiciosos quando chegou ao Brasil, em 1999. Na época, a meta era atingir 100 lojas em três anos. "Mas com os entraves do custo Brasil, da complexidade tributária, além do ambiente competitivo, a expansão foi limitada", afirma.
"Quando foram adequar o custo de importação ao timing das coleções, o preço acabou ficando acima dos praticados pelos demais concorrentes, o que fez a Zara se voltar para a classe A no Brasil", diz ele. "Eles não têm muito espaço para crescer, levando em conta a pirâmide demográfica brasileira", afirma Serrentino que, no entanto, considera o negócio "bem-posicionado" no país.
Para Eugênio Foganholo, da Mixxer Desenvolvimento Empresarial, o custo fiscal no Brasil desencorajou o grupo a trazer outras marcas voltadas ao público jovem, como a própria Bershka, ou a Pull&Bear e a Stradivarius. O que não aconteceu em outros mercados da América Latina: no México, por exemplo, a Inditex soma 409 lojas de oito bandeiras diferentes, incluindo 84 pontos da Zara. Até na Colômbia o grupo tem mais lojas que no Brasil: 61.
"Eles restringiram a sua atuação no país às marcas Zara e Zara Home, não se tornaram relevantes no mercado têxtil brasileiro", diz Foganholo. "É uma atuação diferente de outros países, onde eles oferecem uma moda mais acessível e com maior rotatividade de produtos, que são seus pontos fortes", afirma.
O grupo produz, no mundo, até 65 mil novas coleções por ano, e conta com uma incrível organização logística, que entrega as roupas mais recentes às suas lojas pelo menos duas vezes por semana.
Na pandemia, a Inditex aumentou suas vendas online, graças à integração da sua rede de 6,6 mil lojas com um complexo sistema de rastreamento de peças e a adoção de uma única plataforma tecnológica.
A tecnologia de rastreamento, conhecida como identificação de radiofrequência, ou RFID, consiste em circuitos em miniatura, escondidos nas etiquetas de segurança das roupas. Ao acompanhar a localização de todas as suas mercadorias até chegarem às mãos dos clientes, a Inditex faz com que as lojas funcionem como mini centros de distribuição, de onde os pedidos online podem ser despachados.
"A empresa é bastante profissionalizada, são o maior varejo de moda do mundo", diz Alberto Serrentino. "Sempre é muito bom quando uma companhia consegue concluir processos sucessórios que preservem a cultura familiar e a sua origem", afirma o especialista, sobre a sucessão no comando do grupo.
Mas o momento exige atenção. No ano passado, um ranking da consultoria Brand Finance com as 50 maiores marcas de vestuário do mundo apontou a Zara em sexto lugar, depois de Nike, Gucci, Louis Vuitton, Adidas e Chanel - em 2019, porém, a marca espanhola ocupava a segunda posição na lista.
Um relatório mais recente da Brand Finance, com as 500 marcas mais valiosas do mundo em 2022, apontou a Zara em 151º lugar, uma perda de 11 posições em relação ao ano passado. O nome vale hoje US$ 12,99 bilhões e, entre as marcas espanholas mais valiosas, só fica atrás do Santander, na 128ª posição no ranking global.
Em 1º de abril, Marta Ortega não vai acumular os cargos de presidente executiva e presidente do conselho como Pablo Isla fez, desde 2011. Em uma nova estrutura de governança, que a empresa afirma estar mais próxima de um modelo "anglo-saxão", o advogado Óscar García Maeiras assumiu em novembro como o principal executivo do grupo (CEO), enquanto Marta será a presidente do conselho. Maeiras está na Inditex há um ano e, antes de se tornar CEO, era membro e secretário do conselho de administração.
No Brasil, lojas da Zara foram palco de denúncias de racismo
A filha caçula de Amancio Ortega trabalha na imagem da marca Zara. É justamente nesta seara que a varejista enfrenta problemas no Brasil. Só no segundo semestre do ano passado, foram três denúncias de racismo feitas por consumidores, contra equipes das lojas da marca em Salvador e em Fortaleza.
O caso mais recente e ruidoso é de um professor negro que foi retirado do banheiro do Shopping da Bahia, em Salvador, no final de dezembro, após ser acusado de furtar uma mochila que ele mesmo havia comprado instantes antes na Zara. Um segurança foi atrás de Luís Fernandes Júnior no banheiro do shopping, o acusando de furto.
Uma loja da marca em Fortaleza, por sua vez, foi acusada de usar o aviso sonoro "Zara zerou" para indicar a presença de pessoas negras ou com vestimentas simples que deveriam ser retiradas da loja. Uma dessas abordagens ocorreu com uma delegada negra, em setembro. Em todos os casos, a empresa lamentou os episódios em nota e disse à época que os mesmos "não refletem os valores da companhia".
Não é só no Brasil que a Zara coleciona polêmicas. Em maio do ano passado, o Ministério da Cultura mexicano acusou a marca de plagiar padrões indígenas em sua nova coleção. Em carta, o governo pediu que multinacional espanhola explicasse porque "uma propriedade coletiva", identificada em várias comunidades oaxácanas, foi "privatizada" e que tipo de benefício remunerado seria direcionado às comunidades criativas.
A reportagem entrou em contato com a Inditex, solicitando uma entrevista com Marta Ortega - para falar sobre os novos desafios à frente do cargo, das tendências no mercado de moda (mais digital e menos 'fast fashion', preocupado com a sustentabilidade), além de uma posição sobre as denúncias de racismo em lojas do grupo no Brasil. A princípio, a assessoria de imprensa do grupo disse que a empresária responderia por e-mail. Depois, a empresa se negou a atender a reportagem.
Fundador comprou prédio de ouro no Canadá por 843 milhões de euros
Os Ortega costumam ser avessos à imprensa. Em agosto do ano passado, antes da sua nomeação como presidente da Inditex, Marta Ortega surpreendeu ao conceder uma entrevista ao Wall Street Journal. Nela, a empresária, nascida em Vigo, na costa noroeste da Espanha, em 10 de janeiro de 1984, afirmou: "Acho importante construir pontes entre alta-costura e a moda das ruas, entre o passado e o presente, entre tecnologia e a moda, entre arte e funcionalidade".
Marta não é tão discreta quanto seu pai: gosta de participar dos desfiles de moda e é frequentadora das rivieras francesa e italiana. Estudou negócios na European Business School, em Londres, e concluiu seu bacharelado na Suíça. Gosta de cavalos e já participou de competições equestres.
É a terceira filha de Amancio. Quando Marta nasceu, o fundador da Zara ainda era casado com sua primeira esposa, Rosalía Mera, que o ajudou a iniciar o negócio de roupas que deu origem à Inditex. Segundo uma biografia de Rosalía, até o nascimento de Marta, ela não tinha conhecimento da relação do marido com Flora Pérez - mãe de Marta e do filho do meio de Amancio, Marcos.
Rosalía morreu em 2013 e deixou a fortuna para a única filha com Amancio, Sandra, o que a tornou na época a segunda pessoa mais rica da Espanha, só atrás do pai. Nem Sandra, nem Marcos, porém, ocupam qualquer posição na Inditex, que tem cerca de 60% das ações nas mãos do fundador.
A despeito de toda a discrição, Amancio Ortega - que se recusava a posar para fotografias até pouco antes da abertura de capital do grupo, na Bolsa de Madri - tomou uma iniciativa inusitada no ano passado: comprou um prédio revestido de ouro em Toronto por 843 milhões de euros. O Royal Bank Plaza, considerado um dos edifícios de escritórios mais importantes do Canadá, ostenta em suas duas torres triangulares camadas de ouro de 24 quilates em suas 14 mil janelas.
Segundo analistas, não se trata de exibicionismo, e sim de oportunidade de mercado. É um sinal de que o setor de locação de escritórios pode estar se recuperando.
RAIO-X DA INDITEX
Fundação - 1963
Sede - Arteixo, Espanha
Funcionários - 144 mil
Faturamento - EUR 19,33 bilhões *
Lucro - EUR 2,5 bilhões*
Presença - 6.654 lojas, em 96 países
Fornecedores - 1.805, por meio de 8.543 fábricas
*no período acumulado de nove meses, encerrado em 31/10/21