O aumento de preços para as famílias brasileiras mais pobres foi mais de 10 vezes maior que a alta sentida pelas pessoas mais ricas de janeiro até setembro de 2020.
Nos nove primeiros meses do ano, a inflação para as famílias com menor renda acumula uma alta de 2,5%. Ao mesmo tempo, a taxa para a classe de renda mais alta é de 0,2%.
Os dados são do indicador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) de inflação por faixa de renda, que em setembro registrou aceleração dos preços em todas as classes pesquisadas.
Esse indicador divide as famílias brasileiras em seis faixas de renda e avalia como a inflação afeta, mês a mês, cada um desses grupos.
De acordo com a classificação da pesquisa, as famílias de renda muito baixa são as que têm ganho domiciliar menor que R$ 1.650,50. E as famílias classificadas como de renda alta são aquelas cujo ganho domiciliar é superior a R$ 16.509,66.
Conta do mercado mais cara
A explicação para essa diferença no peso da inflação para famílias ricas e pobres está principalmente no aumento expressivo de preços de alimentos neste ano.
O brasileiro viu diversos preços no mercado subirem nos últimos meses, apesar de vários alimentos terem ficado mais caros, o arroz ganhou destaque.
Economistas apontam que houve um aumento da procura pelo produto dentro do país, com as pessoas se alimentando mais em casa e com o pagamento do auxílio emergencial, ao mesmo tempo em que a demanda no exterior ficou aquecida, já que alguns países viram parte da cadeia de alimentos ser afetada pelas condições climáticas ou pela própria pandemia.
Junto com isso, a forte desvalorização do real nos últimos meses, que torna os produtos brasileiros mais baratos para quem compra em dólar, tem estimulado ainda mais as exportações.
"Estamos com o câmbio muito desvalorizado e muitos dos nosso produtos usam insumos importados, como a farinha do pão. Ao mesmo tempo, fica muito competitivo vender para fora do país, e isso vai criando restrição de produtos dentro do país que obviamente vão afetar o preço", explica a economista Vivian Almeida, professora do Ibmec.
De janeiro a setembro de 2020, a alta nos alimentos em domicílio é de 9,2%. O boletim do Ipea destaca os impactos dos aumentos no arroz (41%), feijão (34%), leite (30%) e óleo de soja (51%).
Peso no orçamento
A alta de preços no mercado não é novidade, mas o ponto importante é que esse encarecimento é sentido de forma diferente pelas famílias, dependendo da proporção do orçamento que elas destinam para comprar arroz, feijão e outros alimentos.
"A inflação dos mais pobres é muito pressionada pela variação de alimentos. Quando você olha a cesta de consumo das famílias mais pobres, elas consomem menos bens do que as famílias mais ricas, então o alimento acaba ganhando um peso maior", explica a economista Maria Andreia Lameiras, responsável pelo Indicador Ipea de Inflação por Faixa de Renda.
Segundo ela, os mais pobres gastam quase 30% do orçamento da família com alimentos em domicílio. Ao mesmo tempo, as famílias mais ricas gastam uma parcela menor - em torno de 10% - da renda com alimentos em domicílio.
Com um orçamento maior, parte do dinheiro das famílias mais ricas vai para gastos que famílias mais pobres nem tem acesso, como plano de saúde, seguro de carro e mensalidade escolar.
De janeiro a setembro, os chamados serviços livres registraram deflação de 0,05%. Houve quedas de 55% nas passagens aéreas, de 9% nos preços de hospedagem e de 1,7% nas mensalidades de creches.
O relatório do Ipea aponta que essa desaceleração dos preços de serviços traz um alívio maior para a faixa de renda mais alta, que costumava gastar uma parcela de seu orçamento com esses itens.
Algumas famílias com orçamentos maiores inclusive conseguiram economizar em 2020, ao eliminar ou reduzir gastos com alimentação fora de casa ou compra de bens como roupas, conforme aponta Vivian Almeida. "Não é estranho ver quem ganha maiores salários dizendo que aumentou a capacidade de poupança."
Na prática, essa mudança de hábitos gerada pela pandemia de coronavírus também acaba afetando (ainda que temporariamente) a chamada cesta de consumo de cada faixa de renda. Por exemplo: uma família que costumava gastar com duas viagens por ano, pode não ter viajado neste ano.
E o resultado é que as proporções comumente utilizadas para definir a cesta de consumo de cada grupo pode não representar exatamente os hábitos durante a pandemia. É provável que a maioria das famílias (de diferentes faixas de renda) esteja consumindo mais refeições em casa, por exemplo.
"Provavelmente essa família mais pobre que a gente diz que gasta 30% com alimentos pode estar gastando mais. E os mais ricos, que achamos que gastam 10%, provavelmente estão gastando mais também, porque trocaram alimentação fora do domicílio por alimentação em domicílio", aponta Lameiras.
A economista aponta que não é possível quantificar essa mudança sem uma pesquisa de campo, mas destaca que a diferença entre as famílias mais pobres e as mais ricas se mantém.
"Todo mundo mudou seus hábitos de consumo durante a pandemia, mas a diferença vai sempre continuar porque os mais pobres vão sempre consumir uma parcela maior da sua renda com alimentos do que os mais ricos", explica Lameiras.
Diferença menor em 2021
E o que esperar para os próximos meses?
Lameiras diz que a alta nos preços de alimentos deve continuar nos próximos meses e, por isso, a inflação para os mais pobres não deve recuar logo.
"Pode até diminuir um pouco o ritmo de crescimento (da inflação para os mais pobres), mas vai continuar acima dos mais ricos porque a gente não vê até o final do ano um alívio vindo dos preços de alimentos."
Para 2021, a economista diz esperar uma redução na diferença entre inflação dos mais ricos e a dos mais pobres.
"Esperamos que essa disparidade entre oferta e demanda de alimentos melhore. E, com retorno da atividade econômica, esperamos que serviços, que caíram tanto, comecem a mostrar reação. Então a ideia é que a gente tenha menos pressão de alimentos em 2021 e aumento maior da inflação de serviços. Isso vai fazer com que o gap (diferença) entre mais pobres e mais ricos comece a diminuir. Mas por um bom tempo vamos ter inflação dos mais pobres acima."
Para tentar conter alta de preço, o governo anunciou em setembro que decidiu zerar a alíquota do imposto de importação para o arroz em casca e beneficiado até 31 de dezembro. Já em outubro, o governo decidiu zerar a alíquota do imposto de importação também para soja e milho.