Milhares de latinas que vivem ilegalmente nos Estados Unidos e são vítimas de violência doméstica enfrentam hoje um dilema: ter de escolher entre sofrer em silêncio ou correr o risco de denunciar o crime e ser deportadas.
Desde que um plano chamado Sec Comm (abreviatura em inglês para Comunidades Seguras) foi implementado no país, a situação das vítimas de abuso na família piorou, segundo entidades ligadas aos direitos humanos e imigração.
O programa, criado em 2009 para identificar e deportar criminosos sem documentos que representam uma "ameaça à segurança", gerou um aumento recorde nas deportações de imigrantes irregulares sem antecedentes criminais, entre eles mulheres vítimas de abuso.
A lei permite que a polícia compare impressões digitais de suspeitos com informações de bancos de dados de agências federais de imigração. Dessa forma, os policiais sabem imediatamente se a pessoa está em situação irregular no país.
O programa foi criticado não apenas por ONGs que defendem imigrantes como também por governadores de Estado e políticos democratas.
Segundo as estatísticas, o Sec Comm foi o principal responsável por um aumento de 70% em deportações nos Estados Unidos nos últimos dois anos.
As críticas renderam frutos: na última sexta-feira, o governo de Barack Obama anunciou mudanças no programa, com novas regras para as deportações, beneficiando ilegais que atuem como informantes e testemunhas de crimes.
"Deve-se prestar atenção particular às vítimas de violência doméstica ou tráfico de pessoas", disse o diretor do US Immigration and Customs Enforcement (o Serviço de Imigração e Controle de Alfândegas dos Estados Unidos, ICE), responsável pelo plano Sec Comm.
INCERTEZA
Em princípio, as mudanças beneficiariam mulheres que são vítimas de violência doméstica, dando a elas segurança e incentivo para que procurem a polícia e denunciem os parceiros.
Mas será que as medidas são suficientes para protegê-las?
ONGs que defendem os direitos dos imigrantes receberam o anúncio das mudanças com moderação. Elas veem as medidas como um sinal claro, por parte do governo federal, de que o programa de Comunidades Seguras não está funcionando como o esperado.
Mas as entidades explicam que o caso das ilegais que sofrem abusos em casa é bem mais complexo.
As mulheres, dizem as ONGs, são as grandes vítimas de um sistema de imigração que não funciona.
"São elas quem mais sofre com a separação da família (quando um membro é deportado) e, se além disso, ainda são alvo de violência doméstica, são duplamente vítimas", disse Gustavo Andrade, diretor da entidade Casa de Maryland, que oferece assistência aos latinos nesse Estado.
A colaboração entre polícias locais e agentes da imigração, segundo representantes das ONGs, teve um papel concreto na diminuição do número de denúncias de violência doméstica.
"Já há muitas razões para que a polícia não seja chamada em uma situação de perigo, começando pelo temor de represálias por parte do parceiro. Se além disso ainda há uma ameaça latente de deportação, cria-se um obstáculo gigante", disse Andrade.
AGUARDANDO A DEPORTAÇÃO
Maria Bolaños vive o problema na própria pele. Depois de chamar a polícia após uma briga com o marido em que houve violência física, ela vem brigando há um ano na Justiça para evitar ser deportada e separada da filha de dois anos (que é cidadã americana por nascimento).
Bolaños conta que os oficiais que foram à sua casa a prenderam, sob a suspeita de que ela vendia cartões telefônicos ilegalmente.
"Pensava que iam me ajudar, mas a polícia me entregou à imigração e hoje tenho uma ordem de deportação. Não sou criminosa, sou uma trabalhadora", ela disse.
Bolaños fez um depoimento para expor as falhas do sistema. Sua próxima audiência será no dia 3 de outubro.
Para Leslye Orloff, diretora do Programa de Mulheres Imigrantes da organização Legal Momentum, a aplicação de controles mais rigorosos de imigração acaba tendo um efeito duplo.
As medidas "fazem com que muitas mulheres imigrantes tolerem por mais tempo a vida em um contexto de violência doméstica", disse Orloff. "Mas, além disso, seu efeito secundário é que os causadores do abuso não são castigados".
Existem recursos legais que poderiam, em casos como esses, evitar as deportações: por exemplo, a Lei Federal de Violência Contra a Mulher de 1994 e os vistos do tipo U, de caráter humanitário. Nem todas as imigrantes, no entanto, conhecem seus direitos.
Segundo estimativas de firmas de assistência legal, cerca de 1% das mulheres vítimas de violência doméstica tem acesso ao visto U, que as protege de uma expulsão.
As restantes, como María Bolaños, tem de defender suas causas no tribunal ou passam a integrar as estatísticas --do próprio ICE-- que indicam que 55% dos deportados desde que o programa Sec Comm entrou em vigor são, na realidade, inocentes, infratores menores ou acusados que não foram condenados.